Viver
Palavra de Honra | Não podemos obrigar os outros a ver o que achamos que devem ver
Luis Lacerda, Arquitecto, investigador e membro da Fade In
- Já não há paciência… para o Xico Esperto, sempre cheio de belas impressões causadoras de conquistas por chavões que prometem conquistar o próprio do inimigo que há em si, numa luta medíocre, popular e dispensável como um saboroso iogurte em final de validade.
- Detesto…sentir-me um monstro gigante, de olhos franzidos, encostado a uma montanha rogando pelo descanso. Detesto interrogar-me do porquê de ter à minha frente, olhos nos olhos, um xaréu cantante poisado no meu dedo indicador, enquanto eu monstro gigante, carrego sem me aperceber um qualquer cemitério de punhais voadores.
- A ideia… de não fazer esforço para que nada aconteça, assusta-me.
- Questiono-me se… não serei eu, já um velho?
- Adoro...viver neste Momento Impensável que nos aconteceu. Faz-me mergulhar mais ainda nos meus detalhes e fico com a noção de que a pandemia é, volta e meia, refletir sobre a velhice. Este tempo deixou-nos mais sentimentais em alguns aspetos, inclusive eu, e a cada dia que passa deambulo pandémicamente sobre esta questão da idade e da velhice, uma vez que os mais velhos têm sido os mais penalizados.
- Lembro-me tantas vezes…das minhas incapacidades.
- Desejo secretamente…continuar a imaginar os meus limites. Sempre que parto para um processo criativo, parto com bastante medo, medo de não conseguir levar-me até onde eu pretendo ir, sem que me desaponte, porque enquanto estou a criar confronto-me muitas vezes com as minhas incapacidades, penso nas minhas limitações, porque eu não consigo fazer tudo o que eu quero fazer.
- Tenho saudades…dos jogos de rua, dos amigos piratas da cabana, dos galhos e dos sacos de plástico, do cheiro dos carolos, das feridas do martelo na cabeça, dos desastres com a bicicleta, dos gritos de alegria. Tenho saudades mas hoje sou feliz.
- O medo que tive…e que tenho ainda é, poder não haver espaço para todos se manifestarem das mais variadas formas. A velocidade a que nos chega a informação é igual à velocidade com que desaparece da vida das pessoas. É preciso tempo para absorver a manifestação artística de cada um, sendo que,
absorver uma arte não é o mesmo que se dizer que se viu. É preciso viver a arte e para isso é preciso o tempo “antigo”.
- Sinto vergonha alheia…da forma como certas pessoas demonstram preconceito e dependem da forma como vêem o outro. A evolução da perceção é cada vez mais ditada pela circunstância do mercado, tornando-se preconceituoso e muito injusto para muitas pessoas. Às vezes, toda esta forma de como as informações circulam, pode até destruir ou inibir o momento ou o processo criativo. Podemos lutar, mas não podemos impor, não podemos obrigar os outros a ver o que achamos que devem ver.
- O futuro…espero nunca me ver a redefinir a minha vida. A minha prioridade é e será tentar ser o melhor marido, esposo, amante e amigo da minha Célia e o melhor pai para a nossa Maria.
- Se eu encontrar…a minha reflexão dentro desta bolha direi que vivemos um momento de grande crise e que terá um grande impacto para muitos artistas. Hoje parece que o meio de transmissão só existe através da internet e que vivemos numa ilusão de que tudo é possível desde que caiba dentro de um qualquer Facebook, Instagram... basta comprimir um trabalho de uma vida, ou com 20 metros, numa foto, e já está. Parece o infinito ambiente de um qualquer programa de Autocad. É uma peste que tende a contagiar tudo e todos, que transforma dimensões físicas numa arte de gaveta. Neste momento, acho muito difícil encontrar um artista que consiga expor num espaço físico e que tenha o público digno, para ver a arte ao vivo.
- Prometo…que quando esta distopia, ou esta “pandemência”, que nos afetou, enquanto indivíduos transtornados e incapazes de governar-nos, nos aliviar as condições de vida extremamente negativas que vivemos, que quero ir para qualquer lugar, pode ser ir só até ali à esquina. O não poder ir é péssimo, mas pior ainda, é não poder sonhar com isso.
- Tenho orgulho…em experimentar e compartilhar o sentido de uma ideia que se expõe a um fracasso. O que nós fazemos depende de nós, o que não fazemos não depende de nós. A nossa primeira tarefa tem de ser com aquele impulso, pensamento criativo, com a nossa convicção e condição e, por isso, sou apologista de trabalhar até ao fundo, respeitando-nos a nós mesmos, o que é o mais difícil. E quando chegarmos à exaustão, ao último pingo de suor, então aí podemos descansar com o Xaréu e os punhais voadores.