Viver
O “fim do mundo em cuecas” e “mais um par de botas”
Quando vai para “a rambóia”, depois de uma semana a “trabalhar como um mouro”, já o mandaram ir “chatear o Camões” e teve de “bazar”, depois de um encontro “resvés Campo de Ourique”, com alguém de mau vinho e grande “cardina”?
Chamam-se expressões idiomáticas e são tantas, tantas, milhares até e já incorporámos tantas que são importadas da outra banda do Atlântico, que já nem as sabemos destrinçar. “Estamos certos ou estamos errados”?
É que “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”. Reunir todas estas expressões pode deixar uma pessoa com “água pela barba” - a “barba” é a proa de uma embarcação, ”'quando a água está pela barba', a situação começa a ser preocupante para a sua estabilidade”, explica Sérgio Luís de Carvalho, no livro Nas Bocas do Mundo.
Elas existem em todo o lado e estamos sempre a usá-las pois estão “à mão de semear”. Usamo-las para dar exemplos e para simplificar pensamentos mais complexos que, de outro modo, nos deixariam a “cabeça à nora” e a dar voltas à “cachimónia”.
Muitas delas não são a “última coca-cola do deserto”, para usar uma mais recente e ligada ao marketing… e contudo, não as poder aplicar como desbloqueador numa conversa pode ser “o fim do mundo em cuecas” (situação complicada vid. Orlando Neves, Dicionário de Expressões Correntes).
Neste texto, tentamos explicar algumas, as mais óbvias, é claro, mas também admitimos que, noutras, perdemos o “fio à meada” e nem mesmo obrigando os neurónios a um raciocínio do “arco da velha”, chegamos a conclusão alguma. Começamos por “puxar a brasa à nossa sardinha”.
É uma expressão directa e de fácil entendimento. Mas estamos a divagar, levar o pedaço de carvão incandescente para perto do nosso peixe significa que defendemos os nossos interesses e tentamos alcançar uma vantagem com uma acção ou gesto. “O filólogo e linguista brasileiro Antenor Nascentes explica que a expressão também existe em espanhol («arrimar el ascua a su sardina»)”, explica Andreia Vale.
A jornalista e autora do livro intitulado, justamente, Puxar a Brasa à Nossa Sardinha, conta que há referências à expressão numa obra do início do século XIX - Voyage en Portugal fait depuis 1797 jusqu’en 1799. Nele, descreve-se que, em Lisboa, “os mendigos costumam assar as sardinhas na rua, servindo- se de alguns pedaços de carvão que acendem, obtida prévia licença, no lume de que certos artistas se servem para os seus ofícios.”
Já alguma vez se cruzou, ao volante do seu automóvel, com um carro que circulava tão perto que acreditou que ia bater… e não bateu por um divino rolar dos dados? Foi “resvés Campo de Ourique”, certo? Mas, por que razão se cita uma zona de Lisboa, para dizer isso?
“A explicação mais conhecida encontra justificação no terramoto de Lisboa, a 1 de Novembro de 1755. Naquela manhã, o sismo que abalou a capital provocou um maremoto de tal dimensão que terá chegado perto de Campo de Ourique, mas aquela zona da cidade escapou intacta, mesmo à tangente...” Ou seja passou resvés.
O sismo inspirou outra expressão usada quando alguém morre e “vai fazer tijolo”. Os antigos cemitérios mouros de Lisboa situavam-se numa zona má para a decomposição dos cadáveres, onde agora se situa o bairro da Graça.
O solo, aí, era constituído por barro, que, depois do terramoto foi usado para fazer os tijolos usados na reedificação da capital. Não era incomum encontrarem-se ossos humanos durante o fabrico. Logo, quem tinha morrido, tinha ido fazer tijolo.
Obras de Santa Engrácia
Lisboa nunca está longe dos aforismos da língua portuguesa e Andreia Vale dá mais um exemplo no seu livro. As “obras de Santa Engrácia” referem-se a algo que demora muito tempo a acabar ou nunca termina.
A igreja perto do Campo de Santa Clara, que hoje é um dos panteões nacionais, começou a ser edificada no século XVI, por ordem da infanta D. Maria. Esta dedicou a vida à Igreja, fundou vários conventos e, entre as várias obras patrocinou a Igreja de Santa Engrácia, que mandou construir em 1568… mas 300 anos depois, os empreiteiros ainda metiam a “colher na massa”, sem que o edifício estivesse concluído.
“Desde falta de dinheiro à falta de interesse ou de mão-de-obra, houve tudo e 'mais um par de botas' para justificar a demora...”, resume Andreia Vale. O dia-a-dia das nossas conversas é muito rico em expressões deste tipo e nem as páginas de toda esta edição do JORNAL DE LEIRIA chegariam para as explicar a todas.
Tentar fazê-lo, seria como “meter o Rossio na Rua da Betesga”… que é mais uma expressão que Andreia Vale explica no seu livro. “Na Praça D. Pedro IV, mais conhecida por Rossio, podemos perceber com os nossos olhos o significado da expressão de que falamos. Ou seja, tentar fazer caber uma coisa grande num espaço pequeno. Meter uma praça grandiosa como o Rossio, com o Teatro D. Maria II, a estátua de D. Pedro IV - que se diz ser, na verdade, a estátua do imperador Maximiliano do México, reutilizada por ser mais barato -, duas fontes, o Café Nicola e a Pastelaria Suíça (só a título de exemplo), numa nesga como a Betesga seria, claro, impossível.”
Se tiver oportunidade, leia Puxar a Brasa à Nossa Sardinha e descubra as razões para expressões que “não lembram ao careca e muito menos ao diabo”. Lá encontramos “nem disse água vai nem água vem”, “pior a emenda do que o soneto”, “vai chatear o Camões”, “passar as passinhas do Algarve”, “anda mouro na costa” ou “ver Braga por um canudo”.
A influência árabe no português
Fazemos agora uma pausa no rectângulo ibérico que dá pelo nome de Portugal e seguimos numa viagem no tempo até ao tempo das mil e uma noites.
Na língua do dia-a-dia usamos inúmeras expressões que evoluíram do arábico e do moçárabe (língua que evoluiu do árabe e latim e era falada na Península antes da Reconquista), durante os 750 anos de domínio muçulmano na Península.
Atendendo a que Portugal tem 873 anos de história e é um dos mais antigos países europeus, é fácil de perceber que uma passagem tão demorada por um território deixa indeléveis marcas. O Dicionário mourisco e de gíria, de Frederico Mendes Paula, assinala centenas de palavras, mas vamos deixar- lhe algumas, cuja origem nem imagina, e por ordem alfabética.
O termo açorda originará de at-turda, uma sopa de pão, comum durante tempos moçárabes, açougue, ou talho, deriva da palavra as-Suq usada para designar todo e qualquer mercado. A célebre “água de bacalhau” servia para designar a água benta usada pelos cristãos nos seus ritos e, para um muçulmano era, naturalmente, “água suja”.
Actualmente, um alarve é alguém mal educado, estúpido ou comilão, mas a palavra tem origem no árabe e era usada pelos cristãos para designar os muçulmanos, isto é os al-'arabi… os árabes.
Não, não é um jaguar
“Amigo da onça”
Sabia que uma onça é um animal da família dos felídeos que ocorre nas Américas Central e do Sul, da família do leopardo e que, fora do Brasil é conhecido por jaguar? E o que tem este grande gato a ver com o “amigo da onça”?
Na verdade e ao contrário do que se pode encontrar em muitas referências na internet com origem no Brasil, nada tem a ver com a expressão e também não tem origem em Terras de Vera Cruz. Passamos a explicar.
Os “amigos da onça” são aquelas pessoas de pouca confiança que se aproximam de quem lhes pode fazer ganhar algo. Por outras palavras, são oportunistas. Ora, se atentarmos ao facto de que, nos séculos XVII, XVIII e XIX, antes da introdução do sistema métrico, a onça era uma das medidas de peso do Portugal medieval, simbolizada pelo símbolo oz e cujo valor é de pouco mais de 28,3 gramas, e ainda que o tabaco era vendido às onças, percebemos de onde vem a expressão.
Sempre que alguém era bafejado pela sorte de receber o salário e comprar tabaco para o cachimbo, via-se automaticamente rodeado de amigos… da onça, que mendigavam algum tabaco.
Ou seja, a expressão nada tem a ver com o jaguar, mas com os amigos oportunistas que só se aproximam, quando têm algo a ganhar.
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