Opinião

Letras | "Bigodes e afetos"

31 jul 2021 00:00

“Refúgio, espaço físico que oferece condições de segurança e estabilidade” é uma frase de destaque num pequeno livro de contos sobre refugiados que ando a ler por estes dias

Encontrei o livro por acaso, ao procurar a bibliografia do Afonso Cruz de que tanto gosto e não hesitei a encomendá-lo mesmo sem o ver ou folhear.

Nos últimos dois anos tenho trabalhado com alunos e não só, questões inerentes aos direitos humanos, a interculturalidade, migrações por motivos vários, mas também pela ausência de paz ou pelas condições sub-humanas em que muitas pessoas vivem.

É certo que ultimamente não fazem manchete nos jornais, nem a abertura dos jornais da noite, mas a catástrofe dos migrantes matará diariamente números comparáveis com a pandemia e fará danos profundos nas vidas e nas almas de muitos mais.

Uma terra prometida, assim se chama o livro, chegou-me pelo correio, trazendo com o Afonso Cruz, contos sobre refugiados escritos pela Ana Margarida Carvalho, Carlos Ferraz, Cristina Carvalho, Filomena Marona Beja, José Fanha, Miguel Real, Nuno Camarneiro e Sérgio Luís de Carvalho.

Lê-se de um fôlego, mas perde-se o fôlego do murro no estômago… dos momentos de pura indiferença e displicência sobre um tema que nos devia sensibilizar e preocupar a todos…

Assobia-se para o lado e continuamos na nossa vidinha, nas nossas férias, nos nossos projetos de vida.
Há os que fogem em busca de um melhor, mais bonito, ou pelo menos mais tranquilo projeto de paz e que ficam pelo caminho, esperançosos na sua boia salva-vidas de sabão azul e branco, que como nos mostrou o João Pedro Vale, dará uma falsa sensação de segurança até que puff, ela e eles se dissolvam no mar.

E como diria o Papa Francisco, destacado também na contracapa do livro “o inimigo da paz não é apenas a guerra, mas também a indiferença”. 
E é por isso que entendo que importa não deixar apagar este tema da ordem do dia e continuar a trabalhá-lo, a par do respeito pela diferença, pela interculturalidade, pela luta pelos direitos humanos e acima de tudo pela hospitalidade.

Importa pensar o trabalho em rede, a empatia, importa saber acolher. Importa a generosidade.

“Queria falar-vos do bigode do meu pai. Ele tem o bigode mais bonito de toda a rua, de todo o prédio e devo dizer que todos os homens que conheço têm bigode. O do meu pai é diferente. Nem muito farfalhudo, nem ralo. Uma tira de pelos certos e muito bem aparados um pouco abaixo das narinas e a rasar o lábio superior. Nunca vi aquele bigode sujo! Nem com restinhos de sopa, nem com bagos de arroz, nos tempos em que havia arroz, nem desalinhado, nem nada! E cheirava sempre muito bem! Porque ele dava-me beijos à noite antes de me deitar e eu sentia perfeitamente o hálito da sua boca e o aroma do seu bigode.”

Delicioso este momento do conto da Cristina Carvalho.

Deixo-vos hoje esta sugestão para a época estival, para lerem na cama de rede ou de pés na areia… ou a olhar em frente no mar que nos retempera e afasta as maleitas, mas cemitério de tantos…

Quem sabe se pensarmos e agirmos todos um pouco mais, estas crianças possam continuar a contemplar os bigodes dos seus pais e a sentir o calor dos seus beijos à noite e vivam em segurança e em paz que é o mínimo que se pode pedir para fazer brilhar o sorriso de uma criança.

Porque não podemos, de forma alguma, ficar indiferentes.

Sugestão: Uma terra prometida-Contos sobre refugiados, Organização José Fanha, Zeroa Oito 

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990