Opinião

A dor que parte e a dor que fica

3 out 2025 16:25

Eu sei que a correria da vida nos distrai uns dos outros e que nem sempre percebemos os demónios que habitam quem se cruza connosco

Lembro-me de me ligares numa noite de inverno e de me pedires para sair contigo. Disse-te, à lareira, que não. Andavas instável e falava-se da agressividade que ultimamente pautava o teu comportamento. Uma revolta ocupava o teu rosto, as tuas respostas eram bruscas e imprevisíveis e permitias-te a excessos que não podias ter. Eu sei que não estavas bem, conheci-te antes dessa tormenta, mas tive medo. Desculpa.

Em 2002, perdi um amigo para o suicídio, um amigo a quem, uns tempos antes, sentira que virara as costas. Sem essa perceção na altura, mas com essa convicção depois. Os sinais estavam lá e eu não os vi e a decisão por ele tomada naquela madrugada, pareceu-me, em parte, responsabilidade minha também. Em setembro assinalou-se o Dia Mundial da Prevenção do Suicídio. As estatísticas dizem-nos que em Portugal se suicidam pelo menos 3 pessoas por dia e que no mundo uma a cada 40 segundos todos os anos.

O impacto deste tipo de perda nos que ficam é imensamente doloroso. A ausência de um culpado, como uma doença grave ou acidente, deixa uma data de ses que precisam de encontrar uma narrativa suportável que permita o luto.

É urgente prevenir e conhecer sinais de alarme pode ser determinante. Qualquer ameaça, mesmo que verbal deve ser levada a sério, assim como falar sobre querer morrer ou sentir--se um fardo. O afastamento dos outros, mudanças bruscas de humor, despedidas, ou até o desfazer-se de bens pessoais, são formas silenciosas de pedir ajuda.

Desesperança na vida, aumento do consumo de álcool/drogas, alteração da medicação são também indicadores de sofrimento profundo. Eu sei que a correria da vida nos distrai uns dos outros e que nem sempre percebemos os demónios que habitam quem se cruza connosco, mas estar atento e disponível para escutar é por vezes o suficiente.

Hoje, passados mais de vinte anos, ainda te vejo no teu casaco de ganga. A tua cara nunca se gastou, nem os movimentavas que fazias enquanto rias. Ainda te oiço a fazê-lo. Sei, por isso, que estamos em paz.

Texto escrito segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico de 1990