Viver
Um poema de Afonso Lopes Vieira inspirou A Garota Não para escrever uma canção sobre o 18 de Janeiro, que estreou na Marinha Grande
“Saudades não as quero, fascistas também não”, tema criado de propósito para a Marinha Grande, encerrou, com emoção, o concerto no Teatro Stephens
“Bateram fui abrir era a saudade” é o primeiro verso do poema de Afonso Lopes Vieira, “Saudades não as quero”, que Cátia Oliveira adaptou para uma canção original tocada pela primeira vez na Marinha Grande, com o título “Saudades não as quero, fascistas também não”.
Na última estrofe, a cantora conhecida pelo nome artístico A Garota Não, que compôs 2 de Abril, um dos álbuns portugueses do ano em 2022, escreve sobre o exemplo de resistência operária na capital do vidro:
“Marinha Grande é mais que liberdade
É a raiva feita de um país inteiro
Há sempre quem sonha e quem luta
há sempre quem combata a força bruta”
“Saudades não as quero, fascistas também não” encerrou, com sentimento à flor da pele, a apresentação no Teatro Stephens, na última quarta-feira, 18 de Janeiro (vídeo aqui).
A artista quis proporcionar um momento “especial” e uma noite “maior do que um concerto”. E ofereceu ao público (e à Marinha Grande) uma canção inédita, criada “de propósito”, que abre com os versos de Afonso Lopes Vieira e tem mais duas estrofes, da autoria de Cátia Oliveira, que, então, cantou:
“Bateram e entraram sem pedir
pra fechar as nossas janelas
para baixar a chama das velas
vieram pra nos proibir
Mas há quem siga sem medo
e não devia nunca morrer cedo
Bateram e vi homens de verdade
era a revolta de Janeiro
Marinha Grande é mais que liberdade
É a raiva feita de um país inteiro
Há sempre quem sonha e quem luta
há sempre quem combata a força bruta”
O concerto nem era para acontecer. Não agora, pelo menos, porque Cátia Oliveira já tinha decidido não tocar ao vivo durante as primeiras semanas do ano. O convite do município da Marinha Grande, no entanto, trazia associada uma data com significado, 18 de Janeiro, em que se homenageia a revolta de 1934, ocorrida em ditadura, com Salazar no poder.
Com expressão em diferentes pontos do país, a greve geral teve na Marinha Grande um dos cenários de maior importância, em grande parte por força da adesão dos trabalhadores da indústria vidreira.
“Fizeram história. Foram homens de valentia, de coragem”, assinala Cátia Oliveira, durante a conversa com o JORNAL DE LEIRIA.
Quando aceitou ir a palco no Teatro Stephens, a cantautora que cresceu no bairro 2 de Abril, em Setúbal, em quem muitos vislumbram o espírito da música de intervenção popularizada pela geração de Abril e por nomes como Zeca Afonso, uma influência assumida no projecto A Garota Não, começou a procurar o texto adequado para prestar homenagem à cidade e ao 18 de Janeiro – até que, entre as pesquisas pessoais e as mensagens recebidas de fãs que moram na Marinha Grande, e que lhe escreveram a falar da importância da data, chegou ao nome de Afonso Lopes Vieira (que não conhecia) e ao poema “Saudades não as quero”.
“Bateram [a primeira palavra do poema] é um bom leitmotiv”, comenta.
A canção estreada na Marinha Grande representa um agradecimento pelo convite para tocar no Teatro Stephens e uma forma de surpreender o público que a foi ver.
“A minha música precisa muito deste entrosamento com os lugares e com as pessoas”, explica Cátia Oliveira.
Na história do 18 de Janeiro, a cantora identifica “uma noção política” que a “fascina” e diz que “os marinhenses tiveram audácia”.
“Tenho pena que hoje em dia estejamos todos muito mais apagados, desse ponto de vista”, conclui.
Por enquanto, não está nos planos gravar “Saudades não as quero, fascistas também não”, que “valeu pelo momento”. Alguns espectadores “ter-se-ão comovido” e para todos fica a memória, certamente relevante.
“Homenageavam-se daqueles homens e mulheres que fizeram frente ao estado novo. Que não aceitaram que os sindicatos não fossem estruturas livres e independentes. Que não aceitavam que os direitos não fossem iguais entre todos (mesmo estando alguns deles no patamar de cima). Que sonhavam com lugares onde a Vida fosse uma circunstância melhor, feliz. Foi um honra estar convosco. É um prazer ver as vossas expressões", escreveu Cátia Oliveira nas redes sociais, depois no concerto na Marinha Grande.
A Garota Não actua em Leiria a 24 de Fevereiro, no Teatro José Lúcio da Silva, e os bilhetes já se encontram à venda.