Sociedade

Última entrevista de Lemos Proença - “O melhor é implodir o estádio”

9 nov 2015 00:00

Na última grande entrevista que deu nos 18 anos que se seguiram ao seu abandono do cargo de presidente da Câmara de Leiria, Afonso Lemos Proença, falecido na sexta-feira, dia 6, afirmava não ter responsabilidades na maioria dos erros urbanísticos de que o

“Politicamente não valho nada. Só tenho um voto” (Fotos: Ricardo Graça/Arquivo)

João Nazário - direccao@jornaldeleiria.pt
Graça Menitra

Dizem que ninguém conquista a Concelhia do PSD sem o seu apoio... Como é que mantém essa influência no partido?
Isso é conversa …Não tenho nenhum cargo no PSD! A única coisa que pode haver é ainda alguma influência em amizades entre militantes. Uma pessoa que tenha um conjunto de amigos com que se dá tem sempre influência. A única coisa que às vezes posso ter e ainda conservo é o sentido de ideia. Ser criativo, digamos assim.

Qual considera ser a sua obra enquanto autarca?
Não sou adepto de obras de fachada. Preferi sempre, com o acordo das câmaras que tive honra em presidir, realizar planos de obras essenciais por todo o concelho, podendo citar programas de construção de escolas, trazer para Leiria o Instituto Politécnico de Leiria, a quem a Câmara cedeu instalações de início e arranjou terreno para as suas instalações definitivas, programas de postos médicos, de pavilhões desportivos e apoio às várias associações, o novo quartel dos Bombeiros, a biblioteca municipal, apoio ao Nerlei, estradas, água e saneamento. Sempre tendo em atenção todo o concelho, lembrando que a cidade, apesar da sua importância, tem apenas pouco mais de 10% dos habitantes do município.

Foi acusado de ter permitido exageros na construção, com urbanizações caóticas e sem qualidade…
É curioso que a urbanização que me perseguiu como um mau exemplo, foi a da Marquês de Pombal, a qual foi aprovada no mandato anterior à minha chegada e que incluía já as edificações das Galerias São José, do Tribunal de Trabalho e outras que foram sendo desenvolvidas. Ainda se corrigiu alguma coisa, mas havia direitos adquiridos. Alguns críticos chegaram ao ponto de chamar o arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles para se pronunciar sobre o urbanismo de Leiria, tendo ele afirmado que o que cá encontrara era o normal noutras cidades. Aliás, quando se constituiu a Adlei, dizendo-se que era para contestar o caos urbanístico de Leiria, o que estava em construção era resultado de urbanizações vindas dos mandatos anteriores, como na Cruz da Areia, Marquês de Pombal, a Quinta de Santo António, a Encosta ou Quinta do Bispo, entre outras. Curiosamente, entre os fundadores da Adlei havia pessoas que tinham ocupado altos cargos na Câmara. Uma até com interesses no terreno da esquina da Marquês de Pombal onde foi construído o prédio que não respeita o alinhamento da avenida.

O que fez foi tudo bem feito?
Com certeza que não. Todos cometemos erros. É preciso, no entanto, ter em atenção as épocas… Naquela altura havia uma grande pressão na construção, consequência e factores diversos, como a enorme procura. Cada época define a urbanização. Lembram-se de quando todas as cidades queriam torres? E não se fizeram outras coisas no concelho de Leiria durante os meus mandatos?

O que responde a quem o acusa de se ter aproveitado economicamente do cargo?
O que hei-de dizer sobre isso? Fizeram-me todas as acusações, auditorias e inspecções que quiseram. Nada foi encontrado. Até tive um inquérito feito pela Judiciária às minhas contas e de familiares o qual foi arquivado liminarmente. A minha vida é simples, nunca viram em mim grande coisa. Arranjei com que viver. Que as pessoas me tivessem dado uns presentes, isso dão a todos os que estão nestes lugares. Hoje com certeza que também dão e continuarão a dar. Uma coisa de que não me podem acusar é que tivesse prejudicado o serviço público para benefício próprio.

O que se dizia de receber cinco ou dez por cento de obras que aprovava é, então, um mito?
Naquela altura, falar em corrupção era o prato do dia. Dizer que recebia cinco ou dez por cento de uma obra era um absurdo, por irreal e impossível. Não era uma época de milhões. A legislação era muito mais rigorosa do que hoje e Câmara tinha muito menos poderes que actualmente. O presidente, então, nem se fala. Nunca, por exemplo, tive delegação de poderes para decidir as construções e loteamentos da cidade. O mesmo acontecia quanto às obras municipais, que obrigavam, mesmo as de valores pequenos, a vistos o Tribunal de Contas, além de que não havia ajustes directos. Veja-se hoje em que é tudo aos milhões, com ajustes directos até cinco milhões de euros. Já para não falar nas derrapagens ciclópicas. Nós nunca tivemos obras a derrapar nos preços.

Disse em determinada altura ao JORNAL DE LEIRIA que teria muito que contar sobre os que se arvoram de antifascistas mas que foram oportunistas. Pode ser este o momento?
Alguns já morreram e as pessoas que morreram têm de se respeitar. Uma ocasião-e isso veio nos jornais-, o Mário Soares veio cá fazer a presidência aberta por causa da Ribeira dos Milagres e, num comunicado, a Adlei sugeria que visitasse alguns pontos da cidade. Escrevi uma carta em que agradeci à Adlei o interesse nos pontos que consideravam maus em Leiria, mas também sugeri outros, ligados a amigos da Adlei (exemplo de um prédio da Marquês de Pombal e das instalações da antiga Map). Dizem que a Adlei foi constituída para combater o caos urbanístico. Mas, repito, quando fui para a Câmara esses projectos já estavam todos aprovados por eles. Tomás Oliveira Dias era até o presidente da Assembleia Municipal do mandato do Carlos Pimenta. Ou seja, a Assembleia também não tomou nenhuma posição contra esse caos urbanístico. Às vezes as coisas não são bem aquilo que dizem. Mas, como dizia Goebbels, uma mentira muitas vezes repetida transforma-se em verdade.

Como comenta o desenvolvimento do concelho após a sua saída da Câmara?
As leis das autarquias alteraram-se muito. O poder local que, a meu ver, tinha poder a mais ainda com mais ficou. Isso permitiu avançar-se com grandes obras que, se por um lado, mostravam imponência, por outro, iam aumentando o endividamento das câmaras. Para contornar esse problema aumentaram-se impostos e taxas, por vezes de forma muito acentuada. Posso citar a criação da derrama, que nunca tinha existido em Leiria e que foi criada logo após a minha saída. Por outro lado, algumas das obras executadas, sendo úteis, não fomentaram desenvolvimento. E como, por outro lado, os leirienses, que são fenomenais no aspecto individual e capacidade de iniciativa, mas não têm grande espírito associativo e bairrista, Leiria foi perdendo importância política.

E como comenta a construção do estádio?
É evidente que foi uma obra que alterou toda a situação financeira e económica da câmara. Não me pronuncio se o construiria ou não porque não sei quais as pressões que houve, não podendo, por isso, culpar-se apenas Isabel Damasceno. Pelo que me consta, houve uma espécie de unanimidade entre as entidades que têm voz activa na cidade e creio que a própria Adlei nada tenha objectado à sua construção, bem como os eternos e míticos intelectuais leirienses. A única coisa que não faria era destruir o que estava construído. O estádio tinha sido remodelado há pouco tempo,tinha uma pista de tartan nova, tinha um pavilhão gimnodesportivo, um campo de treinos. A ter que fazer, teria feito o estádio noutro lado. No referente ao processo e à gestão não posso falar, por desconhecimento. Os administradores da Leirisport poderão explicar como decorreu a obra e a grande derrapagem que se diz ter ocorrido.

Como resolveria agora o problema?
Olhando para o estádio a deteriorar-se progressivamente e sem utilização, nem vendo grandes perspectivas para uma ocupação cabal face à situação da União de Leiria e ao desinteresse manifestado pela população, e caso a Câmara não encontre uma solução desportiva ou recreativa rentável, parece-me que o melhor será implodi-lo. Depois pode prever-se para a zona uma urbanização adequada, que seja estudada por quem de direito e conhecimento, tendo em atenção a situação actual. Um shopping, que me parecia ideal, é capaz de já não ser oportuno.

Como comenta a situação da União de Leiria? Relacionava-se bem com João Bartolomeu?
Não conheço os detalhes, por isso nada posso adiantar. A União de Leiria, para todos os efeitos, era um símbolo e um cartaz de Leiria. Deveria procurar harmonizar-se esta questão, não sei como. Conheço o João Bartolomeu e apesar de ser uma pessoa difícil tive com ele um bom relacionamento. Não tive problemas especiais e ele sempre me respeitou. Quando o encontro, embora raramente, falamos de forma normal e cordial.

Nas últimas eleições autárquicas, ficou a ideia de que uma facção do PSD de Leiria apoiou Raul de Castro. Como comenta?
De forma expressa, não tenho conhecimento de que houvesse apoio por parte do PSD a Raul Castro. Existiram problemas e desacertos no que se refere ao PSD, com responsabilidades em todos os escalões dirigentes, não tendo havido uma personalidade que, serenamente mas de forma precisa, pusesse termo às desavenças ocorridas. O resultado viu-se. Agora quanto às votações, quem pode falar ou dizer? Ao vencedor faltam sempre votos, pois todos dizem ter votado nele.

Votou PSD nas últimas eleições?
O voto é secreto. Não estive envolvido directamente nessa eleição.

Viu então com bons olhos a eleição de Raul Castro?
O povo é que votou e espero que faça bom mandato, porque isso é bom para o concelho. É uma pessoa experiente e tem a oportunidade de demonstrar as suas capacidades.

Gostava que fosse reeleito?
É um bom nome, que está com o PS. Há outros nomes referidos, como Fernando Costa, Narciso Mota, José António Silva, Laura Esperança, Telmo Faria, António Lucas e a própria Isabel Damasceno, bem como outros que por certo irão ainda aparecer como eventuais candidatos do PSD. Mas é cedo para se poder dizer alguma coisa, pois falta sair a lei das autarquias que definirá as regras que vão ser impostas. Entretanto, o que desejo é que não se repita a confusão de 2009, na qual, como disse, todos tiveram culpa. O PSD deve funcionar unido e os seus elementos esquecerem raivas e desavenças para não se repetirem erros.

Mas não apoiou Isabel Damasceno, filha de um dos seus melhores amigos. Incompatibizou-se com ela?
Não criei inimizade com ninguém. Mas eu não sou elemento dos quadros do PSD e a minha voz era muito apagada dentro do que se passava e passa em Leiria. Não me consultavam nem me convidaram, nem ninguém me pediu nada directamente. Eu politicamente não valho nada. Sou apenas um militante e só tenho um voto. Não sei o que o partido pensa nem qual a orientação que quer dar.

As obras do Polis resultaram bem na cidade?
O que acho, e aí impera o meu sentido técnico, é que estas obras quase todas derraparam. Parece-me que houve uma faceta técnica e económica que não funcionou. Consta que o Polis de Leiria custou 4,5 milhões de euros e eu não vejo obra nesse valor. Houve uma coisa que sinceramente não faria, nem me deixavam fazer na época. As árvores centenárias do Jardim Luís de Camões não deviam ter sido cortadas.

Independência
Na Faculdade namorei uma colega comunista
Como se deu a sua entrada para a política?
Na política, como noutras coisas, entrei por acaso. Nunca me interessei por política. Sempre fui muito independente. Até namorei, ainda uns anos, com uma moça colega na faculdade, no Porto, que era comunista. Nunca mais a vi. Isto só para dizer que não ligava à política. Liguei sempre às pessoas. Tudo acasos. Entrei para a política na passagem para o Marcello Caetano porque tinha uma faculdade que era a de mobilizar pessoas.

Quer concretizar?
Na electrificação da freguesia da Maceira, por exemplo, que era um projecto grande com cerca de 14 postos de transformação. A primeira vez que contactei o director-geral dos Serviços Eléctricos foi para lhe pedir uma comparticipação. Só que ele fez-me o desafio de fazer em poucos meses aquela obra, para me dar a gratificação. O que é que fiz? Chamei o presidente da Junta e disse-lhe para arranjar representantes de todos os lugares. E desafiei-os: se querem electrificação, cada lugar faz a sua cabine e cada pessoa desse lugar abre um buraco para pôr um poste. Todos concordaram e o que é certo é que cumprimos o projecto.

Mário Soares disse, em determinada altura, que tinha um “temperamento anarca”. Alguns diziam que não escutava os outros. Revê-se nessas definições?
De não escutar os outros não é verdade. Anarca, talvez um pouco, no sentido daquilo que chamo de independente, de não me agarrar muito às coisas. Já às pessoas quando me agarro e sou amigo, sou mesmo amigo. Mas falando do Dr. Mário Soares, com quem me dei excelentemente e muito falámos aquando da criação da Fundação Mário Sores, referiu na entrevista que deu na última edição do JORNAL DE LEIRIA apenas Isabel Damasceno e Raul Castro como grandes colaborantes na Casa Museu João Soares. Não falou em mim. Creio que não foi por esquecimento ou conveniência, mas sim para preservar quem colaborou na criação de uma instituição que tem sido de grande interesse e relevo para o concelho, mas que dentro do contexto actual haverá sempre quem não goste. E os outros dois que foram indicados, têm sempre a desculpa, se aparecessem criticas, de que encontraram tudo em andamento.

Solidão
Não tenho problemas de estar sozinho
Depois de sair da Câmara de Leiria viu-se pouco em cerimónias ou actos públicos. Porquê?
Não me convidavam. Só a partir de certa altura é que começaram a convidar. Também é do meu feitio ir o menos possível a actos públicos. Quando era obrigado ia, mas era sempre o último a chegar e o primeiro a sair. Depois de ter saído da Câmara procurei não incomodar ninguém e, mesmo na Câmara, só procurava as pessoas com quem necessitava mesmo de falar.

Mas isso não o magoava?
O que me magoou, em certa altura, foram algumas questões pouco justas porque o processo (eleições autárquicas) foi todo mal conduzido, o que me obrigou a tomar posições que não devia ter tomado. E o mais curioso é que foi sem necessidade. Ainda estava na Câmara e há mais de um ano que tinha dito, ao então presidente da Comissão Política, José António Silva, que não era candidato. Só que depois arranjaram umas trapalhadas. Hoje já nada me magoa. É evidente que na altura em face de mentiras que se dizem, ou de certos falsos amigos que aparecem, fica-se magoado, mas passado é passado. Não voltei mais à câmara e quando lá passo perto e olho tenho a sensação de que nunca lá estive. E de quem era amigo, continuo amigo. Não sou daqueles que dizem mal de outras pessoas mas que quando elas chegam ao poder começam a andar de braço dado.

Tem rituais no seu dia-a-dia?
Um regime alimentar regrado e equilibrado. Há mais de 40 anos que não como fritos nem guisados. Dou um passeio diário de quatro a cinco quilómetros, faço exercícios respiratórios e, de tempos a tempos, umas massagens num terapeuta amigo. Leio muito livros de história e biografias e faço exercícios e muitos testes de palavras cruzadas e semelhantes. Vejo também muitos filmes e já tirei da internet todos os que vi na infância.

É um cinéfilo?
Sou. Possuo mais de dois mil filmes e colecções completas de actores de que gostei, em especial do cinema americano e italiano.

Qual era a actriz com quem gostaria de ter jantado?
Comecei por admirar a Barbara Stanwick, depois a Lana Turner, de seguida a Esther Wilams e, na década de 70, as italianas, em especial a Laura Antonelli de que tenho praticamente todos os filmes. Foi a artista de Malicia. Hoje gosto de ver a Virginia Madsen, a Uma Thurman, e outras mais.E as séries CSI Miami e Castle.

Perfil
O homem que electrificou o concelho

Lemos Proença, 84 anos, nasceu em Granjal, concelho de Sernancelhe (Viseu), a 13 de Novembro em 1928. Veio para Leiria em 1958, através de concurso para director delegado dos Serviços Municipalizados, já formado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia do Porto. Recorda que quem pediu informações suas ao Porto de Leixões, onde trabalhou ao mesmo tempo que estudava, foi Rocha e Silva. Isto porque informações da PIDE diziam que tinha assinado a lista da MUD - Movimento de União Democrática, de oposição ao regime fascista em Portugal. Lemos Proença diz não se recordar ainda hoje se assinou ou não. Devia ter então 16, 17 anos. Autor do projecto de electrificação de todas as fábricas particulares de Leiria da sua época, o ex-presidente da Câmara Municipal de Leiria desmente que tenha 27 casas ou quintas: “A minha vida é simples. E os meus filhos não precisam, graças a Deus”. A filha, economista, tem dois filhos médicos e o outro está também a acabar Medicina. O filho é licenciado em Economia e tem dois filhos na mesma área. O seu pai morreu aos 29 anos com febre tifóide, antes do seu nascimento. O seu único irmão faleceu ainda bebé. Como o pai era sargento, foi “parar” aos Pupilos do Exército, a forma mais económica de poder estudar. Enquanto estudante na faculdade, concorreu ao Porto de Leixões, entre 48 engenheiros técnicos, e ficou em primeiro lugar. Esteve lá cerca de oito anos. Na actualidade, Lemos Proença procura adaptar-se, na sua “simplicidade”, às mudanças que se operam no mundo e por isso aceita o casamento homossexual.