Desporto
Três décadas depois, Carlos Vieira sem bifes no rabo nem couves na cabeça
Faz no sábado 30 anos que o bombeiro-ciclista arrancou para uma aventura de 191 horas em cima da bicicleta. Uma história de sofrimento que colocou Leiria no livro dos recordes
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Corria o ano de 1980 e o Guinness Book e seus loucos recordes estavam na moda. Influenciado pela febre, o bombeiro e ciclista Carlos Vieira procurou no livro um desafio à sua altura e... encontrou! Estava mais do que visto que as 187 horas e 28 minutos em cima de uma bicicleta de Vivekananda, um ilustre cidadão do Sri Lanka, não poderiam durar muito tempo.
Os amigos aconselharam-no a não embarcar na aventura, mas o ex-ciclista do Sporting, antigo colega de Joaquim Agostinho, não os ouviu. Como gostava de percorrer grandes distâncias e de estar muitas horas em cima da bicicleta começou a traçar uma estratégia para bater o anterior máximo mundial de resistência em ciclismo. “Foram três anos a preparar-me”, recorda Carlos Vieira.
“Dormia em casa, fazia 24 horas nos bombeiros e ia para o estádio fazer dois dias seguidos de bicicleta. Voltava a trabalhar nos bombeiros e só depois é que ia para a cama.” Foi, depois, aumentando a duração dos treinos. O mais longo que fez foi de cinco dias e oito horas.
Em Setembro de 1992, o atleta tenta pela primeira vez entrar no Guinness Book, mas o falhanço é rotundo. “Foi um fenómeno”, diz. “Na primeira tentativa e só aguentei quatro dias e meio, menos do que habitualmente fazia nos treinos. Oficializei o pedido junto do Guinness, arranjei um grupo de amigos para me apoiar, mas ao quarto dia queria comer e não tinha ninguém, estava tudo a dormir. Tive de encostar.”
A frustração deu rapidamente lugar a mais e mais vontade de repetir a tentativa. Nove meses depois, nada poderia falhar. “Arranjei uma comissão a sério, malta competente, e um grupo de ciclistas que andavam sempre comigo, três de cada vez, para nunca ficar sozinho.”
No dia 8 de Junho de 1983, a aventura começava. Carlos Vieira parte então para as 191 horas mais longas da sua vida. “Disse que batia o recorde ou morria em cima da bicicleta.”
O dia D
O percurso fazia-se na zona adjacente ao Estádio Municipal, ainda na versão anterior. Passava ao lado do campo pelado – que já não existe – e do pavilhão – que também já era. “Na altura não havia nada para fazer, só dois canais na televisão e o pessoal vinha para aqui apoiar-me. Vinham escolas inteiras apoiar-me e até bandas de músicas.”
A cidade estava em festa por um homem que estava a sofrer horrores. A partir do sétimo dia, a dor sobrepôs-se a qualquer outra sensação e o bombeiro-ciclista que perdeu várias vezes o discernimento. “Contaram-me – porque eu não me lembro - que perguntei: 'o que ando aqui a fazer?' Disseram que estava a bater o recorde do mundo e eu respondi: 'são malucos, agora a bater o recorde...' Perdi completamente a noção.”
Carlos Vieira tem recordações que o levam a crer que ultrapassou os seus próprios limites. “Doía-me tudo, os médicos diziam para eu beber cinco litros de água e eu nem conseguia. Via as pessoas ou os animais que se mexiam com uma aura, um arco-íris à volta do corpo, e ouvia quem falava comigo com eco, como se estivessem no fundo de um poço.” As mudanças de humor constantes eram outra prova de que nem tudo estava bem.
![](https://www.jornaldeleiria.pt/uploads/m/4/5/carlos-vieira-record-guinness-2.jpeg)
Para os anais ficou o episódio mais caricato de oito dias em cima de uma bicicleta. Para mitigar o sofrimento, Carlos Vieira utilizou bifes dentro dos calções e uma couve na cabeça. E se o vegetal ajudou a refrescar o cérebro, a verdade é que o naco de carne para amaciar o selim acabou por não ter o efeito desejado.
“Sou ciclista desde pequeno e pensava que tinha o rabo calejado, que não ia precisar de nada. O tanas! Andava com o rabo todo em ferida. Os dias mais quentes desse ano foram precisamente quando estava a tentar bater o recorde e o sangue, com o suor, corria-me pelas pernas abaixo.”
E a ideia dos bifes, de onde surgiu? “Olhe, utilizei a técnica do anterior recordista, mas foi ainda pior. Quando o bife entrava em contacto com a ferida sentia a refrescar, mas acabou por ser contraproducente.”
No livro
Às quatro da manhã do dia 16 de Junho, Carlos Vieira deixa então a marca de Vivekananda para trás e grava a letras de ouro o nome no Guinness Book of Records. Em estado frágil, mas sem querer ficar por aí. Passadas três horas, o ponto final.
“O médico, o doutor Eusébio, queria que parasse. Mas eu estava teimoso, porque tinha a bancada cheia, a gritar por mim. Só que ele disse: a partir deste momento, não assumo mais responsabilidade, já chega. E lá parei.”
O hino nacional tocou na aparelhagem do estádio e Carlos Vieira entrou na ambulância. Destino: hospital dos Covões, em Coimbra. Quando acordou, não sabia o que lá estava a fazer.
“Vejo aquela lâmpada das salas de operações e estou rodeado de batas brancas. O que se passa? Estou no céu?” Para trás ficaram oito dias em cima de uma bicicleta, da qual só podia sair para satisfazer as necessidades fisiológicas – mais de uma hora foi descontada do tempo final – ou para pegar noutra bicicleta quando tinha um furo.
O título do Correio da Manhã de 17 de Junho de 1983 era sugestivo: “De couve na cabeça e bife no traseiro, aí vai ele para o Guinness”. Carlos Vieira foi capa na espanhola Hola, na brasileira Globo e foi a abertura do telejornal. Em suma, colocou Leiria no mapa, idade que ainda hoje lhe presta a devida vénia. “Toda a gente me cumprimenta em Leiria, mas muita nem sei quem é.”