Abertura
Trabalhar quando todos estão a festejar o Natal
A Consoada é por tradição uma noite de reunião de família, de aproveitar o momento para estar com aqueles com quem estamos poucas vezes e para partilhar a felicidade. Mas, nem todos podem ter esse privilégio. Há quem tenha de trabalhar para ajudar quem mais precisa
Polícias, militares, agentes da protecção civil, médicos e enfermeiros são alguns dos profissionais que estão na linha da frente para garantir a segurança, controlar o trânsito e acudir de imediato a uma doença súbita.
São homens e mulheres que assumem o trabalho na noite de Natal com um espírito de missão e com a consciência de que podem fazer a diferença na vida de alguém.
Têm pais, mães, mulheres, maridos ou filhos com quem gostariam de passar a noite da Consoada, mas sabem que tem de haver sempre alguém que não pode parar, mesmo que seja Natal. Muitos ficam afastados da família, apesar de admitirem que esta é uma das noites do ano onde há menos trabalho.
No Comando Territorial da GNR de Leiria, os militares de serviço têm permissão para jantar com a família mais próxima. No entanto, não seria a primeira vez que o bacalhau ficaria a arrefecer na mesa para responderem a uma chamada. Fátima Pereira recorda uma situação em que estava para começar a jantar quando a patrulha da GNR foi chamada a intervir numa disputa de poder paternal.
Também Sandra Baptista lembra a noite de um 24 de Dezembro em que passou com os bombeiros à procura de alguém que tinha tentado o suicídio. “A família ligou a dizer que a pessoa tinha ingerido algo e saído de casa. Conseguimos encontrá-la, e sobreviveu.”
Apesar de todos preferirem passar o Natal com os familiares, os vários militares com quem o JORNAL DE LEIRIA falou assumem que poder fazer a diferença na vida de alguém é reconfortante e há sempre um sentimento de dever cumprido, com a consciência de que esta foi a profissão que escolheram e da qual se orgulham.
Para quem tem filhos pequenos torna-se mais difícil explicar-lhes a ausência. “Fica muitas vezes uma certa mágoa. Mas não é só no Natal, como em outras datas importantes”, confessa Timóteo Lopes, que é casado com uma enfermeira. “As minhas filhas chegaram a passar natais apenas com os avós, porque o pai e a mãe estavam os dois de serviço”, revela.
Apesar de algumas ocorrências, habitualmente, as noites da Consoada são tranquilas. Timóteo Lopes, que faz serviço no trânsito, afirma que há mais movimento antes da noite de Natal e já de madrugada. Nuno Churra acrescenta que, como muitas vezes, os automobilistas reconhecem que beberam acima da sua conta não chamam a polícia e resolvem os acidentes menos graves. Para este militar, ao longo dos anos de serviço as famílias acabam por se ir habituando à ausência na mesa da Consoada.
No entanto, a camaradagem permite trocas para possibilitar a quem tem filhos estar com a família. Nunca é bom dar más notícias Vítor Maurício confessa que o mais difícil, para si, é ter de dar uma má notícia na noite de Natal. “Nunca é bom, mas comunicar um falecimento quando a família está toda reunida… é algo que fica sempre marcado”, diz, situação que a sua colega do trânsito não concorda: “É sempre difícil da mesma forma.”
Integrados no programa que dá apoio aos idosos, Vítor e Sandra aconchegam um pouco mais quem acompanham habitualmente nesta quadra. “Há uma carência afectiva. Estão sozinhos, sem ninguém. No dia 24 procuramos dar-lhes ainda mais um pouco de atenção e levar-lhes um miminho”, contam, ao revelar que há casos de idosos que ficam “doentes” neste dia. Uma forma que arranjam para passar o Natal no hospital.
A GNR proporciona aos seus velhinhos um almoço de Natal e até ao Dia de Reis vão sendo entregues pequenas lembranças, que alguns guardam religiosamente de uns anos para os outros. A noite de Natal é também dada a furtos, o que obriga aos militares da investigação criminal estarem de prevenção. “Acontece haver assaltos num apartamento, com várias pessoas nos andares. É difícil a pessoa chegar a casa, após a noite de Natal com familiares, e encontrar a porta arrombada e tudo remexido”, refere João Costa.
“Pensamos no lado bom que é saber que podemos auxiliar alguém. A sociedade também reconhece o trabalho das forças de segurança e há sempre alguém que entrega bolos reis e doces”, reconhecem. Luís Santos vai estar a trabalhar entre as 16 e a meia-noite nos dias 24 e 25 na PSP. “Esperamos que seja calmo. Vamos tentar fazer uma pequena ceia, se não houver ocorrências. A família fica em casa”, conta. Com dois filhos de 5 e 8 anos, o pai Natal vai chegar a sua casa, em Soure, na manhã do dia 25, quando as crianças estarão prontas para abrir os presentes e o pai participará no momento e no almoço de Natal com a família. “É sempre complicado passar o Natal longe. Já são 17 natais em serviço, mas é uma condição inerente à profissão. Quando vim para a polícia já sabia que poderia ser assim. Todos gostamos de passar esta data com a família, mas nem sempre é possível”, afirma Luís Santos, que quando esteve colocado noutros comandos mais longe de casa nem almoçar com a família conseguia.
“Para nós é mais difícil, porque estamos longe. A família vai-se habituando.” No ano passado esteve de serviço e apanhou uma situação de violência doméstica, perto das 2 horas da manhã. “A situação em si não é fácil, mas tendo em conta o dia ainda é mais complicado”, admite. Natural de Santa Eufémia, em Leiria, o dia de Natal é também o dia do aniversário de Tiago Jorge. O agente estava escalado este ano, mas à última hora conseguiu trocar. “Já aconteceu ter de trabalhar, mas costuma ser uma noite tranquila, muito mais do que no Ano Novo”.
Tiago Jorge tem dois filhos, com 1 e 6 anos. “Quando são pequenos ainda não têm a noção da falta, mas à medida que crescem questionam a razão por que o pai não está com eles no Natal.”
Com responsabilidade no trânsito, Tiago Jorge trabalhou no ano passado e os filhos passaram o Natal com a mãe e com os avós. “Alguém tem de estar a trabalhar. Mas há mais acidentes no Natal do que no Ano Novo, sobretudo nas deslocações para junto da família. Há aquela ânsia de chegar rápido, ou no regresso, após a ceia”, adianta.
Quando estão a trabalhar o Natal é passado com a família via telefone. “É um orgulho envergar esta farda e sei que estou a desempenhar uma profissão que é necessária. Temos um dever. É a nossa missão e estamos cá para isso. Mesmo que seja necessário fazer alguns sacrifícios”, assumem.
Ao contrário do que sucede na GNR, na PSP a família dos agentes em serviço na Consoada não janta na esquadra. O bacalhau é preparado pela messe e, se houver oportunidade, jantam com os colegas. Os docinhos são trazidos de casa, mas há estabelecimentos que também oferecem alguns doces tradicionais.
Desde 1995 que Fernando Santos se habituou a passar alguns Natais longe da família. “Geralmente, tende a ser uma noite calma. Os acidentes ocorrem, sobretudo, após ou antes do Natal. Na sala somos dois elementos e fazemos o nosso jantar, com interrupções quando é preciso”, conta o operador do Comando Sub-Regional de Emergência e Protecção Civil de Leiria.
Durante a hora de jantar as chamadas são escassas e costuma dar para jantar, mas quando é preciso interrompem o repasto para dar apoio às chamadas de socorro que surgem. O agregado familiar tem autorização para estar presente durante a hora do jantar, mas nem sempre acontece, porque esta é uma noite de reunião com outros familiares e acabam por se juntar em casa, optando por ficar longe do marido ou da mulher que estão a cumprir um serviço a bem dos outros.
Idosos ligam para ter companhia
“Cada vez temos tido mais idosos, que estão sozinhos em casa, a ligarem-nos para falar connosco. Quando temos disponibilidade, conversamos um pouco mais com eles, mas nem sempre é possível”, conta Fernando Santos.
Casado e com três filhos, este técnico da Protecção Civil admite que é mais complicado passar a Consoada fora de casa quando os filhos ainda são pequenos. “Ficar longe é sempre diferente, até porque há familiares que só se juntam nesta quadra. Mas é bom perceberem que está alguém deste lado que pode ajudar. Somos o suporte de outros que também estão a trabalhar e que precisam do nosso apoio, como os bombeiros ou as forças de segurança”, assume Fernando Santos.
Graça Cardoso é operadora no Comando Sub-Regional de Emergência e Protecção Civil de Leiria há cerca de seis meses. Este será o seu primeiro Natal longe do filho, maior de idade, mas não é o primeiro Natal a trabalhar. Como voluntária dos bombeiros, primeiro em Pombal, e agora em Leiria, já fez outras noites da Consoada ao serviço. Mas, das outras vezes, o filho costumava passar o Natal consigo nos bombeiros. Este ano, o jovem optou por ficar sozinho em casa.
“Entro às 20 horas e vou deixar tudo pronto para ele. Nos bombeiros a noite também costumava ser tranquila. As famílias também são compreensivas. Custa sempre, mas alguém tem de estar a fazer este serviço e a cuidar dos outros”, confessa.
Carla Marques, chefe de sala, não esquece o primeiro Natal que passou no Comando, em 1991. “A minha avó, que era o pilar de todos, morreu pouco depois da meia-noite. Ninguém me disse nada. Saí às 8 horas do dia 25 e quando cheguei a Tondela, vi o carro funerário à porta”, recorda.
Depois disso já passou várias Consoadas longe da família e do filho, o que deixa sempre um aperto no coração.
Apesar da noite de Natal ser tranquila, um acidente com vários mortos, na ponte da Madalena, em Leiria, deixou marcas até hoje. “Sabemos que as pessoas estão a ir ter com a família e que já não se vão reunir. É triste. Nesta altura, também há alguns suicídios. É uma quadra com muita solidão para algumas pessoas”, revela. Urgências no Natal são mesmo graves Se PSP e GNR têm a porta sempre aberta, a urgência do Centro Hospitalar de Leiria é o lugar onde se salvam vidas 24 horas por dia 365 dias por ano. Para que tal seja possível, médicos, enfermeiros, técnicos, administrativos e auxiliares têm de estar sempre disponíveis, incluindo na noite e dia de Natal. Na próxima semana, Rita Martins vai estar a trabalhar até às 16 horas nos dias 24 e 25.
“Vou estar ausente no almoço de Natal. Espero chegar ao lanche, a tempo da sobremesa”, brinca, para afastar a tristeza que sente por ter de ficar afastada dos filhos. “Desde que fui mãe tenho conseguido passar a noite de Natal com eles. Mas é sempre difícil não poder passar esta quadra com eles. Este ano a minha filha escreveu uma carta ao Pai Natal a pedir que a mãe tivesse sempre férias no Natal”, revela, admitindo que o coração ficou apertadinho ao ler a mensagem da criança de 9 anos. “Nesta idade começam a perceber a ausência. Ela entende que a minha profissão é muito importante e que os doentes precisam de mim, mas também diz: ‘há tantos enfermeiros, eles podem fazer esse trabalho, e tu tens os teus filhos e nós só temos uma mãe’”, conta Rita Martins.
Segundo a enfermeira, nestes dias as situações de urgência que chegam ao hospital são realmente graves, porque “ninguém quer estar no hospital”. Por outro lado, os idosos que vivem isolados e sozinhos ‘sentem-se doentes’ nestas alturas. Uma forma que encontram para não estarem tão sós na noite de Natal.
“Desde o início da semana que notámos uma maior afluência dessas situações. Não é bonito, mas sentimos que há idosos que vêm nesta altura para não estarem sozinhos”, confessa. Rita Martins não esquece uma noite marcante da Consoada quando estava a trabalhar. “Já foi há muitos anos, mas nunca mais consegui esquecer o olhar devastado de uma mãe, cujo filho teve uma morte acidental”, confessa. Segundo conta, a família estaria reunida e o jovem foi atingido, de forma acidental, por uma arma de fogo. “Imagino o que é estar num momento de felicidade e acontecer esta tragédia. Não consegui esquecer a cara daquela mãe e a situação”, reforça.
Sónia Salgueiro vai também trabalhar no dia 25, das 8 às 20 horas. “Vai ser muito difícil. Tenho dois filhos, de 6 e 12 anos, e já houve uma preparação junto deles, a explicar que a mãe vai estar a trabalhar nesse dia, passando a noite da Consoada com eles”, revela.
A médica já está habituada a falhar esta quadra, mas confessa que é sempre complicado por se tratar de um momento de união e emotivo para todos. “Muitas vezes, choram eles e choramos nós.”
A filha mais nova disse à mãe que lhe vai escolher outra profissão. “Não podes ser médica dos animais?”, questionou, ao que a médica explicou que também esses podem ter de fazer urgências. “O meu filho já disse que não quer ser médico. É difícil para as crianças, apesar de estarem habituados a que façamos turnos e trabalhemos ao fim-de-semana. Mas o Natal é sempre diferente”, confessa.
Os filhos reconhecem a importância do trabalho da mãe, que se dedica a salvar vidas. E Sónia Salgueiro também ultrapassa estes momentos com essa convicção. Os momentos na urgência são sempre marcantes, mas a médica prefere guardá-los para si. Não obstante, conta que no primeiro Natal da pandemia, depois de tantos dias dedicada à Covid-19 tinha possibilidade de ir passar a quadra com a família. Estava entusiasmada, mas, dias antes, foi infectada pelo vírus SARS-CoV-2. “Tive de ficar sozinha no quarto em isolamento”, lamenta.
Sónia Salgueiro reconhece que as doenças não escolhem dias e há que estar disponível para salvar vidas, sendo que nesta data a carga emocional é sempre maior.
“Há aqueles idosos que querem ficar porque não têm para onde ir e aqui sempre ficam mais quentinhos e acompanhados, mas também temos quem nos pede para ter alta para poder passar a quadra com a família. É triste quando uma pessoa não tem ninguém”, diz.
Este ano, o maior receio de Sónia Salgueiro é uma maior afluência à urgência dado o contexto actual do Serviço Nacional de Saúde, com serviços encerrados em todo o País.
“Assusta-me o número de doentes que podemos vir a receber e a terem de ficar no corredor por falta de camas. A situação pode ser pior, porque o Natal é numa segunda-feira e não há altas ao fim-de-semana”, alerta.
Quando os profissionais de saúde passam a noite de Natal nas urgências, há sempre uma mesa posta com algumas iguarias disponíveis para serem consumidas nas (poucas) pausas.