Viver
Quanto vale uma tartaruga?
Na costa sudoeste de Madagáscar vivem os vezo. Pescadores exímios, percorrem as águas costeiras em pequenos barcos equipados com uma vela e um flutuador. O meu primeiro encontro com estes nómadas do mar aconteceu numa praia próxima da cidade Morondava.
O dia começara há pouco, mas já uma embarcação saía do mar. A canoa puxava uma rede e eu abeirei-me no exato momento em que os dois tripulantes combinaram forças, arrastando-a para fora da água. Tão pesada? Vi então a tartaruga-marinha. Senti um arrepio. Era um belo espécime, enorme, exausto pela luta. A rede apresentava grandes danos, causados pelo animal na tentativa de se libertar. Quase conseguiu. No momento seguinte, os homens, com esforço, viraram a tartaruga de patas para o ar. Do barco veio uma corda e uma vara grossa. Com o auxílio desses apetrechos pretendiam transportá-la aos ombros para as suas frágeis habitações, a pequena distância. Em Madagáscar, as diversas espécies de tartarugas vivem dias atribulados, correm perigo de extinção. O destino do animal estava traçado, mas quis certificar-me. “Sim, sim, iam comê-la”, confirmou um dos homens.
— Mais, monsieur, elles sont menacés d`extinction. De plus la pêche à la tortue est interdit. - retorqui, esperançado numa mudança de intenções.
Num francês muito atrapalhado, arrancado a ferros, por assim dizer, o pescador mais velho diz que ainda assim não a libertariam. Por essa altura já toda a gente que se encontrava na praia, crianças, mulheres, homens, se tinha aproximado, rodeandonos num círculo expectante. O que se seguiu foi uma contenda épica. Eu utilizei todos os argumentos que me vieram à cabeça para convencê-los a deixarem a tartaruga regressar ao mar, porém, eles, para além de não perceberem muitas das palavras que eu distribuía à direita e à esquerda, e provavelmente nenhum dos argumentos, de uma coisa não abdicavam: o direito àquela prenda do mar, que valia mais do que uma rede cheia de peixe.
Sem que chegássemos a um acordo arrisquei tudo. Exigi, sim exigi, que libertassem a tartaruga. Apanhados pela surpresa, primeiro ficaram confusos, de seguida tensos. Uma voz destacou-se e pareceu quebrar o impasse. Que eu entregasse vinte e cinco mil francos malgaxes aos dois pescadores para comprarem uma rede nova. Não hesitei. O réptil foi desamarrado, correndo para a liberdade, com a máxima velocidade que o seu pesado corpo permitia, porém sem sucesso.
Vinda da povoação, na frente de um numeroso grupo de mulheres e crianças, surgiu uma figura de respeito. Era uma mulher enorme, redonda, com uma voz assustadora, uma verdadeira cabo-de-guerra. Ainda ao longe, ganhou influência sobre os acontecimentos. O pescador mais velho, logo que a viu, saltou para cima da carapaça da tartaruga, como se esta fosse uma sela, impedindo-a de alcançar o mar. A voz colérica gritou ordens que todos ouviram em silêncio. O pescador mais jovem, de cabeça baixa, pegou mais uma vez na corda. Saí-lhe ao caminho. Prudência foi, então, o meu ângulo morto. O círculo à nossa volta estreitou-se. Senti alento na multidão para me lançar ao mar. Não teria sido difícil.
No momento em que me preparava para baixar os braços, entrou em cena monsieur Jery. Segui o olhar da horda e encontrei um homem jovem, vestido com roupas leves e cuidadas. Não, não era um pescador. Já devia estar ali há alguns minutos, mas na confusão não me apercebera da sua presença. Tomou a palavra, falando em malgaxe, pausadamente, escolhendo as palavras, certamente, e as pessoas escutam-no. Tem cara de anjo, e determinação de guerreiro. Mesmo assim a mulher resiste. Ergueu os braços bem alto, punhos fechados, gritou colérica, como se a sua linhagem tivesse sido ofendida até à quinta geração. Outras vozes juntamse à dela. Insultam, questionam a legitimidade do menino da cidade — Jery vem da capital — e do estrangeiro, para lhes dizer o que está certo ou o que está errado. A proposta de libertação da tartaruga em troca de dinheiro voltou a ouvir-se. Só que, desta vez, a quantia elevou-se à esfera de negócio de banqueiros. — Um milhão de francos, um milhão de francos e deixamos a tartaruga partir. Bradava um rapaz insolente e muito cheio de si. Uma quantia que, certamente, no grupo, ninguém havia alguma vez visto.
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José Luís Jorge
Texto escrito de acordo com a nova ortografia