Viver

Palavra de Honra | A "ideia" é um gnomo saltitão

2 nov 2021 09:10

Leonor Lourenço, professora e ilustradora

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- Já não há paciência... para as “beijocas” no Facebook, soa-me sempre a beijos abusivos, para a bajulação. Para os inhos e inhas (“a continha” do restaurante, o dentinho que terá de ser retirado, os fofinhos e as fofinhas). Para os “beijos doces”… A sério, acho que excesso de mimalhices sempre me deu alguma urticária. Já me perguntei se algum dia fui romântica. Até o que será isso de ser romântica. Dramática, sim. Vi “Duelo ao Sol” vezes sem conta. Ainda hoje sei de cor o nome dos protagonistas, mas não recordo o nome da série que vejo na Netflix. Se fosse mais romântica, ter-me-ia safo de algumas justificações sobre a intensidade dos meus sentimentos.

 - Detesto… ouvir essa palavra. O “eu detesto”, “eu odeio” incomoda seriamente os meus ouvidos. Digamos que me irrita solenemente ter de chegar ao cúmulo de colocar uma fita vermelha na antena do carro para não passar pela vergonha de me verem a subir e a descer a avenida vezes sem conta em busca do carro, que me perguntem se já tratei do cartão de residente para poder estacionar em frente a casa e de ouvir cada vez mais frequentemente me dizerem “Sim, já disseste isso”… Irrita-me saber o que é “procrastinar” mesmo antes de conhecer essa palavra. Irrita-me a arrogância, gente sonsa, a deslealdade, os surrupiadores “Já
tinha esta ideia na gaveta há muito tempo!” Cof, cof!

-A ideia... em erupção é um gnomo saltitão que não nos deixa descansar, sussurra-nos ao ouvido e não se satisfaz enquanto não se operacionaliza ou materializa em algo diferente. A ideia é viver e deixar viver. A ideia é aceitar o facto de já não poder “colocar de castigo” um antigo aluno, por me pedir uma entrevista de última hora… Terei feito algo semelhante enquanto educadora, do género, pedidos de atividades em cima do acontecimento!? Ops! …

 - Questiono-me se... estas minhas respostas farão aumentar exponencialmente as vendas ou afastarão leitores. Fui alertada para esse facto pelo jornalista responsável por este desafio… “se recusar o convite de responder a esta entrevista corro o risco de ser despedido e a Leonor não quer isso para um antigo aluno porque isso dá cabo do seu rácio de sucesso”.

- Adoro… rir a bandeiras despregadas, galhofar com os amigos, adoro dançar, um gin depois de um dia de stress, fingir que não entendo que me estão a “endrominar”, aí, sorrio por dentro e fico a conhecer a pessoa. Adoro acordar no meio da natureza, dos animais, dos “meus meninos” que me ajudam a ser mais pessoa, da sesta depois do almoço, (quando possível) de dormir tranquila, adoro quando o meu gato me faz sair do sério, rio da minha atitude e das suas fugas após os raspanetes. Adoro quando vejo nos meus alunos a malandrice da infância. Adoro caramelos e bombons Rafaello. Adoro a família e a ideia de futuramente conseguir manter a jovialidade de espírito. Adoro o à-vontade e liberdade de ser e estar que me fui concedendo à medida que fui ficando mais “madura”.

 - Lembro-me tantas vezes... do meu filho pequenino, com saudade, mas também como referência enquanto educadora “como faria nesta situação se fosse o meu filho?” tento questionar-me para me apoiar nalgumas indecisões educativas. Lembro-me tantas vezes que devo registar o que me vai nas ideias. E que devo registá-las e que depois devo lembrar-me de onde as registei. O conceito bullet jornal ajudou-me tanto…

 - Desejo secretamente... um dia me encontrar com a minha avó. Ambas com idade jovem, a galopar no cavalo da sua infância. Desejo secretamente apenas morrer quando me sepultarem, não anos antes disso. Continuar a tentar não me arrastar por sentimentos “pequeninos” em relação aos outros. Desejo secretamente ter um dia um espaço no campo, com animais e um atelier para pintar cheio de elementos da natureza e materiais de pintura de forma a ter espaço para criar e ser mais organizada sem ter de fechar a porta da minha sala pequena quando recebo visitas. Não perder o sentido de humor e a “elasticidade” perante o diferente. Que os meus pais sejam “eternos” fisicamente, que de outra forma eles existirão sempre para mim.

 - Tenho saudades... do cheiro da minha boneca de cabelos laranja que era a minha última imagem antes de adormecer, do creme Benamôr da minha avó, das brincadeiras de infância. De chegar a casa e ter um caramelo feito pela minha mãe, apenas um, tal como os meus irmãos e que me deixava com o desejo de mais.

-O medo que tive… em dada altura da minha vida acreditei seriamente que tinha perdido o sentido de humor, a criatividade, a juventude de espírito, a possibilidade de desenvolver aptidões que fazem parte do meu ser. Continuo a envelhecer sim, mas sempre com uma flor nos cabelos a recordar-me que a idade real pode estar apenas no Cartão do Cidadão. E no esqueleto também…

 - Sinto vergonha alheia... Não consigo pensar em nada que não seja o meu primo a cantar : Ao passar a ribeirinha pus o pé… Não casei na minha terra fui casar à terra “alheira”, fui casar à terra “alheira”…” e ainda bem que não penso de outra forma. Já me chega quando me envergonho de algo em que me dececionei a mim mesma. Cada um que viva as suas vitórias e as suas vergonhas.

 - O futuro... está uma boa parte nas minhas mãos. Todos os dias o vejo espelhado nos olhos do meus alunos. Que responsabilidade!

 - Se eu encontrar... o Génio da Lâmpada pergunto-lhe qual seria o seu desejo se lhe aparecesse alguém a questioná-lo também. Deve ser um segredo altamente inconfessável! A mim não me engana. Há ali coisa. Satisfazer só os desejos dos outros?!

 - Prometo... continuar a não cumprir as promessas a que algumas vezes me proponho, mas também prometo continuar a acreditar que consigo cumpri-las.

 - Tenho orgulho… do meu percurso de vida sem passar por cima dos outros, orgulho-me da minha família, do meu filho, dos meus amigos (nem podia deixar de dizer isto com duas amigas aqui ao meu lado em amena cavaqueira). Tenho orgulho de continuar a sentir-me embora menos vezes dos que desejaria, um pouco, Amélie Poulin. Inclusivé no que diz respeito a andar de motoreta.