Sociedade
"O local de trabalho tornou-se num local de tortura" - Raquel Varela
A historiadora, com estudos na área da história do trabalho e do Estado Social, defende que o pleno emprego deve ser “um desígnio civilizacional”. Diz ainda que as pessoas estão “completamente embrutecidas pela televisão
Daqui a umas décadas, como é que os compêndios de História vão retratar o actual momento do País?
De uma forma diferente – porque a história não se repete –, mas com muitas semelhanças com década de 30 do século XX e com crise de 29. Como um momento de grande escolhas, que se resume a esta ideia: é impossível conciliar a remuneração de capitais, massivamente falidos ou desvalorizados - como tem sido norma nos últimos anos - e a decência e a dignidade do salário. Caminharemos para uma instabilidade social cada vez maior, que, no médio prazo, levará a uma ruptura social. É algo a que vamos assistir. Mas, ao contrário do que se antevia no início da crise, a contestação à austeridade não degenerou em convulsões sociais.
Que explicações encontra?
Os programas assistencialistas generalizados tiveram um efeito de contenção dos conflitos sociais. O rendimento mínimo, as cantinas sociais, os subsídios de desemprego, a ajuda familiar e a emigração de meio milhão de pessoas deram um balão de oxigénio ao regime, mas esse efeito é limitado no tempo. Até porque esta emigração já não tem as características da dos anos 60. Tem muito pouca mobilidade social. As pessoas não vão melhorar muito de vida por mudarem de país. Vão ter emprego, mas tenho dúvidas se vão ter uma vida muito melhor.
Compara algumas das actuais medidas de combate à pobreza com as da Idade Média.
No século XXI devíamos estar a discutir se todas as crianças aprendem música e não se as pessoas têm 130 euros por mês para comer. Isso é inaceitável. É como se tivéssemos uma produção feita à enxada. Com o grau de tecnologia e de ciência incorpora incorporado à produção agrícola, industrial e de serviços é injustificável que estejamos a falar de pobreza medindo se a pessoa recebe dois dólares por dia. Isso não é uma medida da pobreza. Isso é uma medida da miséria. Pobreza é a situação em que vive a maioria dos portugueses, que ganha apenas para pagar as despesas de sobrevivência: habitação, alimentação e roupa. As pessoas não têm acesso à cultura, às viagens ou, sequer, a estarem umas com as outras. Muitas nem se conseguem deslocar a casa dos amigos porque é caríssimo. As pessoas estão completamente embrutecidas pela televisão, com a sua vida social reduzida. Somos seres gregários, que devíamos ter acesso à vida social. A maioria dos portugueses é pobre, apesar de produzirmos um PIB de 170 mil milhões de euros por ano. Se produzimos e se produzimos bem e ganhamos cada vez pior, para onde vai o dinheiro?
Para onde vai?
O dinheiro está a ser completamente desviado do Estado para o sector privado, nomeadamente, através da dívida pública. Hoje, o grande mecanismo de desvio de recursos públicos para o sector privado está nas PPP [Parcerias Público Privadas], nas sub-contratações e nas terceirizações nas área da saúde, da educação e da prestação de serviços do Estado, mas, sobretudo, na dívida pública que, não é de facto, pública. A dívida pública virou uma gigantesca arma de destruição do Estado Social, dos salários e de remuneração dos activos falidos, que passaram a ser passivos. A única forma de voltarem a serem activos é esmagar os salários e as pensões através da dívida pública.
Qual a solução?
Devia haver uma moratória sobre a dívida. Se vamos a um restaurante para pagar dez euros e nos aparece uma conta de 200 euros, a primeira coisa que nos vem à cabeça é dizer que não pagamos.
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