Viver
Música no órgão de búzios, oito dias na prisão e a homenagem ao galo Chico
O relicário de Inês de Castro com madeixa de cabelo e o poema apreendido pela polícia, entre 15 janelas para a intimidade do poeta, nos 75 anos da morte de Afonso Lopes Vieira
Mantinha um galo de estimação e uma colecção de búzios, esteve preso por se revoltar contra a detenção de Paiva Couceiro, promoveu a valorização da obra de Camões com o apoio do Governo e honras de viagem ao outro lado do Atlântico para entregar um exemplar de Os Lusíadas ao presidente do Brasil.
A estátua de Afonso Lopes Vieira na Rua da Graça assinala o lugar onde nasceu em Leiria (numa casa mais tarde destruída por um incêndio) e imortaliza a projecção do poeta num importante período da vida cultural da cidade e do País.
Hoje, 25 de Janeiro, passam 75 anos da morte de Afonso Lopes Vieira.
Os estudos já publicados – em especial, pela investigadora Cristina Nobre, por exemplo, na fotobiografia e no volume Afonso Lopes Vieira na Correspondência e Imprensa da Época, usados para este artigo – permitem mergulhar na intimidade do escritor e compreender como interpretou a criação artística como instrumento para a defesa da portugalidade e para a expressão de uma identidade pessoal.
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O autor de Animais Nossos Amigos mantinha um galo de estimação, Chico, com direito, na hora da morte, a festa de homenagem, a Comenda do Galo, organizada, na companhia de amigos, na casa de São Pedro de Moel, e honras de lápide (com a inscrição "Mais Alto do que a Cruz") fixada no chão do exterior sul da residência, perto do cruzeiro.
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Numa nota escrita por Afonso Lopes Vieira, e recuperada pela investigadora Cristina Nobre, lê-se: “Eu, em criança, contam os meus p.[ais], libertava os ratos abrindo-lhes as ratoeiras... E não mudei”. Na vida do poeta, já adulto, tomaram parte importante a cadela Elsa (representada num puxador de porta), a cabra Carriça (registada em fotografia) e o cavalo Tritão (também fixado em imagem durante um passeio nas dunas entre São Pedro de Moel e Vieira de Leiria).
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A notícia do Diário de Lisboa data de 1933. Descreve o duelo de espadas entre “os srs. drs. Afonso Lopes Vieira e Alfredo Pimenta”, na Tapada da Ajuda, por causa de “uma violenta polémica” literária, relacionada, alegadamente, com a edição da Lírica, de Camões. Com grande detalhe e uma imagem a acompanhar, o combate é relatado passo a passo até ao momento da interrupção, no terceiro assalto, depois de Lopes Vieira tocar o adversário no braço e lhe provocar “uma profunda incisão de três metros, com abundante hemorragia”. Mentira de Primeiro de Abril, com fotomontagem a acompanhar.
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Conta-se que Afonso Lopes Vieira se apresentou, com mala e muda de roupa, para se oferecer à prisão na esquadra de polícia onde Henrique Paiva Couceiro tinha sido detido: “É aqui que prendem pessoas de bem?”. Conforme o arquivo da PIDE/DGS na Torre do Tombo, Afonso Lopes Vieira esteve, de facto, preso em Benfica, com membros do movimento integralista lusitano, de 16 a 24 de Novembro de 1937, por tentar visitar Paiva Couceiro, detido no dia 13 de Novembro após criticar a política colonial de Salazar.
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O mar e a praia de São Pedro de Moel, o pôr-do-sol e o Pinhal do Rei são temas recorrentes nas fotografias da autoria de Afonso Lopes Vieira, uma outra fronteira da mesma península espiritual que os livros e poemas delimitam. Escreve sobre a arte da fotografia e há registo de pelo menos uma exposição, com o título Fotografia Estética, realizada entre 15 e 30 de Maio de 1910 no Salão de O Século.
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Durante o Verão de 1890, com 12 anos de idade, publica dois jornais manuscritos, em que é redactor e director, A Vespa e O Estudante, para leitura de amigos e familiares.
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A casa de Afonso Lopes Vieira sobre a praia de São Pedro de Moel, também chamada casa-nau, é-lhe oferecida pelo pai, em 1902, como prenda de casamento com Helena de Aboim. Lugar da lua-de-mel e de longos dias e noites de inspiração artística ao longo de anos, destino de confluência de personalidades da cultura e da sociedade portuguesa da época, torna-se, por vontade de Afonso Lopes Vieira expressa em testamento, colónia balnear para os filhos dos operários vidreiros, bombeiros e trabalhadores das matas nacionais, função que mantém até hoje. Está, entretanto, transformada em casa-museu.
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Numa carta dirigida a Leonor Rosa, em 1925, Afonso Lopes Vieira escreve sobre o altar do Mar que acaba de erigir na varanda da casa de São Pedro de Moel, com Camões, um aquário de anémonas, conchas e búzios. “Da minha já vasta colecção (cerca de 100 búzios diversos)”, explica. “Como complemento do altar, o órgão de búzios, em que toco frases musicais, de coral, completas, e para que componho música”.
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Segundo Cristina Nobre, a cruz de Cristo é um elemento iconográfico “fundamental para compreender a estesia do escritor”. Aparece numa bandeira hasteada na residência de São Pedro de Moel como emblema da cruzada pela nacionalidade, encastrada em azulejos nas sacadas da varanda, reproduzida nalguns dos livros e escolhida para cobrir a urna de Afonso Lopes Vieira.
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Numa entrevista ao jornalista Artur Portela, publicada em Dezembro de 1921 na Ilustração Portuguesa, Afonso Lopes Vieira fala do relicário de Inês de Castro: “Quandos os franceses arrombaram os túmulos de D. Inês e D. Pedro, a rainha foi encontrada por gente piedosa estendida no chão, cabelos louros desfeitos. Cortaram-lhe algumas madeixas... Uma delas está aí...”
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Citado no volume Notas Diversas, Afonso Lopes Vieira escreve: “Os objectos do nosso uso, ganham uma personalidade e a gente ama-os. Eu não escrevo bem senão na minha mesa, e rodeado dos meus amigos nadas que a povoam”. Entre muitos outros objectos, a que o poeta dedicava devoção, destaca-se a chaise longue, local de criação, na residência em São Pedro de Moel. Mas não só. Também os lápis de cor para alimentar os cuidados estéticos na escrita, o anel comemorativo da edição de Amadis, a faca de abrir cartas com iniciais no cabo, os artefactos para decoração de livros e correspondência, entre outros.
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Em Março de 1921, Afonso Lopes Vieira foi detido e interrogado durante algumas horas no Governo Civil de Lisboa sobre a poesia que acabara de publicar, que tinha sido apreendida pela polícia. Trata-se do poema Ao Soldado Desconhecido (Morto em França), publicado em folheto de quatro páginas, considerado lesivo dos interesses da pátria, por, alegadamente, condenar a intervenção militar portuguesa na primeira guerra mundial. Segundo Afonso Lopes Vieira, seria, na verdade, uma homenagem aos mortos e mutilados do conflito.
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É, provavelmente, o pico da notoriedade de Afonso Lopes Vieira: o envolvimento na edição nacional de Os Lusíadas, em 1928, com o professor José Maria Rodrigues, apadrinhada pelo Governo e impressa pela Imprensa Nacional. Com honras de viagem diplomática ao outro lado do Atlântico, para entregar, em nome do chefe de Estado português, um exemplar ao presidente do Brasil. Notícias e entrevistas, cá e lá, a colocar foco na missão e em Afonso Lopes Vieira.
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O episódio de confronto, em 1932, com Henrique Galvão, representante do ministro das Colónias, no contexto de uma viagem diplomática a Angola, é apontado como causa do exílio a que Afonso Lopes Vieira se submeteu durante anos em Cortes e São Pedro de Moel. Na origem, o não pagamento ao escritor de honorários pelo trabalho de conferencista, que o leva a abreviar a estadia em África antes de chegar a Moçambique, regressando a Lisboa. A rota de colisão com a ditadura fica mais nítida, três anos depois, com a publicação, em 1935, de Éclogas de Agora, em que se afirma crítico e oposicionista dos regimes totalitários, incluindo, o português.
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O nome da biblioteca municipal de Leiria é uma homenagem ao doador inicial. Afonso Lopes Vieira ofereceu à cidade a sua livraria privada, em que se inclui uma quantidade de livros que ele próprio herdara do tio-avô António Xavier Rodrigues Cordeiro. São cerca de 8 mil volumes. O mais antigo, datado de 1549, é uma tradução para castelhano de Apotegnas, de Erasmo de Roterdão.