Viver

Manuel João Vieira: "Hoje em dia o discurso é normalmente mais importante do que o objecto"

2 fev 2019 00:00

Pintor inaugurou a exposição A Alquimia do Excesso, patente na galeria Quattro, em Leiria.

manuel-joao-vieira-hoje-em-dia-o-discurso-e-normalmente-mais-importante-do-que-o-objecto-9800

Porquê Alquimia do Excesso? 
Há um livro do Adolf Loos chamado Ornamento e Crime que acompanha a evolução de um certo purismo monástico, no que diz respeito ao mundo das formas, que depois se pode rever em alguns tipos de arte, como a minimalart, que continua a ser importante para muita gente, mas não está na minha natureza. Presumo que devo ter talvez um horror ao vazio, qualquer coisa assim. E acho o ornamento interessante, aliás, há aqui algumas pinturas em que a própria moldura é também um símbolo em si próprio, é a separação, em princípio, entre o que é o mundo real e a pintura, o universo das formas pictóricas. 

Portanto, prefere o excesso ao vazio. 
Acho que deve haver uma respiração. Como há a forma e o fundo, há o silêncio e a música, há o vazio e o preenchido. Agora, de facto, para aquilo que se faz hoje em dia, desse ponto de vista minimal, isto será um excesso. Mas há muito mais artistas que têm, digamos, uma jactância ornamental e formal muito grande. 

Os ornamentos têm uma função à partida? 
A maior parte das minhas pinturas são na realidade paisagens, vagamente tridimensionais, isto é, há um jogo do bidimensional com o tridimensional que vem da arte académica, e portanto há uma proposta, na maior parte destas pinturas, de entrar numa realidade diferente, onde também há uma tridimensionalidade e onde existe um mundo de formas que têm as suas características. E onde o ornamento tem um lugar e às vezes assume quase o papel central. Mas a maior parte delas são simples paisagens com personagens. 

Que trabalhos são estes que vão estar na galeria Quattro até meados de Fevereiro? 
Não são muito antigos nem são muito recentes. É a escolha que os caracteriza. Foi a Lourdes [a curadora da exposição, Lourdes Féria] que os escolheu e na realidade eu pus de lado mais trabalhos, devo ter o dobro dos que aqui estão. É difícil falar das minhas coisas, ao contrário daquilo que é feito hoje em dia, em que é necessário sempre ter um discurso, porque o discurso é normalmente mais importante do que o objecto, aliás, o objecto hoje em dia tornou-se irrelevante. 

É um exercício que lhe agrada? 
Digamos que dentro de um determinado paradigma da arte contemporânea, o discurso é mais importante, a narrativa é mais importante, a explicação, que muitas vezes é quase uma explicação para crianças, como se o público fosse infantil e como se necessitasse sempre de uma parte conceptual para compreender as coisas. À medida que a forma desaparece, e que o objecto vai desaparecendo como centro magnético da arte, o discurso vai aparecendo. E muitas vezes a obra começa a ser mais virtual, e começa a ser mais aquilo que nós pensamos e a nossa experiência, a experiência do espectador, em consonância com aquilo que é discurso, que se torna mais importante do que o próprio objecto. E o que tentei fazer aqui foi o contrário: foi o próprio objecto a desencadear um discurso, ou antes, que as próprias formas sejam narrativas e que o tipo de narração e que o tipo de história que se depreende das formas esteja contado em imagens e que seja difícil de ser traduzido verbalmente. Há um discurso, há uma narrativa, que é visual. As próprias formas estão impregnadas de sentido narrativo e a ideia é dar ao espectador a oportunidade de ser ele a contar uma história a partir das coisas. E será uma história diferente por cada pessoa. 

O excesso é transformador? 
Bom, o excesso é sempre relativo, é sempre excesso em relação a um vazio. Há vários tipos de excesso. Em princípio, é algo que está a mais. E é relativo a algo que está a menos. Portanto, não sei se o excesso é transformador. Há uma força que tem a ver com excesso que pode ser transformadora na medida em que acaba mais tarde por ser nivelada e pensada. Pode haver qualquer coisa de excesso no próprio gesto criador, ou não, pode ser uma coisa completamente contida e mínima. 

O trabalho que faz na pintura afasta-se das personagens que foi criando? 
O trabalho que faço em pintura é incrivelmente estável, o que me parece é que não consigo encontrar um fim ou uma estagnação de formas, isto é, encontro sempre novas possibilidades e tenho pena de não trabalhar mais porque há sempre coisas para fazer mesmo dentro deste limite que são as duas dimensões, a tela e as tintas. Agora, isso não quer dizer que não me interesse por outros métodos e outras aproximações, como é o caso do artista, que esse sim é um personagem, o Orgasmo Carlos, que é também uma desculpa para me aproximar e simultaneamente para criticar outros tipos de concepção de paradigmas na arte. 

Não é a primeira vez nem a segunda, recentemente, que expõe aqui em Leiria. 
Acho Leiria simpática, gosto de passear na baixa e de não pensar em nada. Tem estas coisas que têm todas as cidades em Portugal, que é serem invadidas por arquitectura do horror na periferia e muitas vezes no próprio centro. E isso preocupa-me em Portugal, em geral, acho que as pessoas têm de pensar no que estão a fazer em termos visuais com a paisagem urbana.
 

Três vezes MJV em Leiria. Exposição, concerto e presença na Ronda Poética
No primeiro trimestre do ano, Leiria recebe Manuel João Vieira em três momentos e roupagens diferentes. A exposição de pintura A Alquimia do Excesso, já inaugurada, fica patente até 19 de Fevereiro, na galeria Quattro. Reúne trabalhos produzidos ao longo dos últimos anos, escolhidos pela curadora Lourdes Féria, que sublinha "a densidade de recursos visuais enigmáticos" de uma obra que "conta histórias, desenvolve sensações" e encena "jogos lúdicos que causam estranheza mas ao mesmo tempo são reconhecíveis como se fossem um simulacro do clássico". Conhecido do grande público sobretudo através da música, em especial com os projectos Ena Pá 2000 e Irmãos Catita, Manuel João Vieira tem um percurso relevante e estável nas artes plásticas, com exposições individuais desde 1987. Está representado na colecção do Museu de Serralves e na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Depois de marcar presença na inauguração de A Alquimia do Excesso, no último sábado, Manuel João Vieira regressa a Leiria em Março, para um concerto no espaço Garagem 82. No mesmo fim-de-semana, participa no lançamento do livro Se Um Dia Voltares, com texto de Paulo José Costa e aguarelas de Hirondino Pedro, no contexto da edição 2019 da Ronda Poética e em simultâneo com a exposição de Hirondino Pedro a inaugurar na livraria Arquivo. Manuel João Vieira nasceu em Lisboa em 1962 e é docente da ESAD.CR, em Caldas da Rainha, desde 2011.