Desporto

Kitó Ferreira: “Era difícil aceitarem-me porque vivia numa barraca, mas através da bola lá fui conseguindo”

10 dez 2015 00:00

Aos nove anos viva na rua com o irmão. Deu a volta por cima e hoje é dos mais conceituados treinadores de futsal do País. A Burinhosa, terceira classificada da Liga SportZone, que o diga.

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O Gonçalo Alves, jogador do Benfica e uma das figuras históricas da modalidade, disse no flash interview do último jogo entre a equipa da Luz e o Burinhosa, que a equipa do concelho de Alcobaça é a que mais de aproxima de Benfica e do Sporting ao nível da qualidade de jogo.

Não posso dizer que seja uma surpresa, mas é motivo de orgulho. Significa que começamos a ser reconhecidos pelo trabalho que fazemos há seis anos. Esta expressão do Gonçalo Alves é curiosa, porque acredito que só jogando com qualidade é que nos podemos aproximar dos melhores. Termos a ousadia de dizer que queremos ser tão bons ou melhores do que os melhores, mesmo sabendo que as condições não são comparáveis, faz com que os jogadores ultrapassem certas barreiras sem se aperceber. Sou muitas vezes criticado na Burinhosa porque a nossa equipa tem uma intensidade que dizem que cansa só de ver. Nunca abdiquei dela. E a realidade é que podíamos ter subido à 1.ª Divisão uma ano mais cedo com outra forma de trabalhar. Mas quando lá chegássemos seríamos mais do mesmo e iríamos lutar para não descer. Sabia que no momento certo em que subíssemos tínhamos trabalho feito para chegar e surpreender, mas são várias as pessoas que nos dizem que jogando com o Sporting e o Benfica não devíamos dar tanto as costas.

Isso é pensar pequeno?

Não estou preocupado com as nossas costas. Estou mais focado em jogar perto da baliza do adversário. Tenho alguns princípios de vida de que não abdico no futsal. Ser mais um entre tantos não é para nós. Queremos ser diferentes, sempre pela positiva. A expressão peito aberto não é a mais correcta. A expressão é ser tão bom quanto os melhores. É o grande desafio, porque estamos a falar de um orçamento 18 vezes superior que o Benfica tem em relação à Burinhosa. Chegar lá, passar os primeiros cinco minutos empatados a zero, ir à baliza do adversário uma vez de vez em quando e depois sair de lá com sete ou oito golos sofridos não me diz absolutamente nada. Prefiro sair com 8-0, mas durante esses 40 minutos evoluir algo para que um dia esteja mais próximo de fazer uma gracinha e a verdade é que já aconteceu meia gracinha...

Vai ser sempre uma gracinha ou há a possibilidade de vermos um dia a Burinhosa lado a lado com Benfica e Sporting?

Essa é a grande questão do momento. É importante que a Burinhosa, um aldeia que hoje é reconhecida a nível internacional e que nem em Leiria sabíamos onde era, perceba o que quer. Está a atravessar um problema de crescimento, que tem sido estonteante e isso traz-nos problemas. O que a Burinhosa pode fazer no âmbito desportivo? Os indicadores estão em cima da mesa. A nível financeiro e de organização terão de ser os responsáveis do clube, dentro desta época e juntamente com os do concelho de Alcobaça, a definir os objectivos, sejam eles fortes ou menos fortes.

Não querendo ser mais um, chegar à quartos-final do campeonato, como a Burinhosa conseguiu na época passada, já pode saber a pouco?

Tenho de passar a bola para quem é responsável no plano da organização e gestão da Burinhosa. Se me perguntar o que se passa diariamente no balneário posso dizer-lhe que o grupo de trabalho sente, claramente, que pode ganhar qualquer jogo. E notamos que os órgãos sociais, os nossos adeptos, o povo da Burinhosa, semana após semana, sentem que podemos chegar a algum lado. E se pelo lado positivo os dados estão em cima da mesa, pelo lado negativo também estão. Na quarta-feira da semana passada fomos jogar à Luz e o Pimpolho, um jogador dos mais importantes, não foi dispensado pelo patrão e não pôde jogar. É esta a linha que tem de ser definida.

Na Gala do Desporto da Câmara Municipal de Leiria recebeu o prémio de treinador do ano. Foi uma surpresa?

Sem dúvida. Estando diariamente a trabalhar a 30 quilómetros da cidade e tendo já trabalhado em clubes do concelho, nas selecções distritais e sido seleccionador nacional de surdos, foi com grande surpresa que o recebi. Trata-se de um prémio individual num desporto colectivo. Acredito que foi o reconhecimento por tudo o que o futsal tem feito pela cidade. Obviamente, encheu-me de orgulho.

Entregou o prémio monetário que recebeu na Gala à equipa de basquetebol em cadeira de rodas da delegação de Leiria da Associação Portuguesa de Deficientes. Porquê?

Principalmente porque as minhas filhas estavam lá. Se me perguntar se me dava jeito, tenho de lhe dizer que sim, mas foi um prémio, algo que não estava dentro do orçamento da minha casa. Senti que naquele momento, dentro do que era a excitação e o orgulho das minhas filhas, era o momento certo para transmitir valores que me parece que existe cada vez menos, a solidariedade e estar ao lado das pessoas que têm dificuldades. As minhas filhas conhecem a história de vida do pai e um dos meus sonhos era que elas nunca tivessem de passar pelo mesmo. E depois, porque aquela equipa me diz muito. Durante os seis anos que treinei o Arnal dividíamos as horas no pavilhão da Maceira e fomos criando uma amizade muito forte. Muitas vezes ficava deliciado a observá-los. Depois de acabarem o treino, ainda tinham de tomar banho, ir para o carro, desmontar a cadeira, metê-la no carro, entrar e seguir em viagem. Tudo isto com um sorriso nos lábios e uma alegria total. São verdadeiras lições de vida.

A sua vida também é uma lição.

Tinha eu nove anos quando o meu pai, que era um homem de sucesso em Leiria, perdeu a cabeça com as mulheres. Na altura, por nunca ter sido casado com a minha mãe, abandonou-nos e vendeu tudo. De repente vejo-me na rua com um irmão de 11 anos e a minha mãe, que passou extremamente mal. Dormi muitas vezes em frente à moagem. Era lá que punha um plástico e ficava com o meu irmão. Aos 12 anos fui trabalhar para uma serração, a única que admitia trabalho infantil, e aos 14 anos, quando já podia trabalhar de forma legal, empreguei-me como padeiro na Guimarota. Ganhava 1.600 escudos na serração e como padeiro ofereceram-me 12 contos. E aí trabalhei até aos 18 anos. Depois, para tirar a carta de condução, tive de ir lavar carros das nove da manhã às quatro da tarde na Citroën.

Esteve muito tempo a viver na rua?

Foi dos nove aos 16 anos. Entretanto comecei a jogar na União de Leiria e foi o senhor Máximo, que gostava muito de nós, que conseguiu que nos atribuíssem uma casa quando foi construído o bairro Sá Carneiro.

Aos nove anos tinha noção de que a sua situação não era normal?

O 25 de Abril tinha passado há pouco tempo e nada era normal. Foi uma fase em que tudo era vida. Lembro-me de alturas, na rua, a chorar de frio e de fome, e lembro-me de alturas, na rua, extremamente contente, talvez por ainda ser muito inocente. Hoje, analisando a minha vida e a do meu irmão, se calhar até pela idade, ele ficou muito mais traumatizado. Ou se calhar traumas diferentes. Nessa altura pensava mesmo era em ter algo para comer. O Natal era dos dias mais tristes. Ouvia os meus colegas e no dia 25, quando acordava, dava uma volta à barraca para ver se o Pai Natal tinha passado por lá.

Como é que as suas meninas olham para esta história?

A mãe faleceu-lhes há seis anos e olham para tudo o que passei sentindo que é algo único e extraordinário, o que não é verdade. O que quero é que elas ganhem princípios e valores que já não existem. No entanto, é difícil que se afastem da sociedade actual. As mais velhas, de 19 e 17 anos, podem dizer que querem um telemóvel melhor porque na escola toda a gente tem, mas depois param para pensar e lembram-se de que nada tive daquilo.

O desporto teve um papel importante na volta que a sua vida deu.

Devo tudo ao desporto e, curiosamente, tudo começou com o desporto de rua. Vivia numa barraca no parque da Fonte Quente, ao lado do parque do avião, onde havia um campo onde jogávamos à bola. Um colega leva-me a um treino de captação à União de Leiria e acabei por ficar. Posso dizer que foi o futebol de rua que me levou ao que sou.

Queria ser jogador de futebol?

Queria, claro, mas não sei porquê, pois não tenho qualquer tradição familiar nessa matéria. O futebol sempre esteve na minha cabeça e lembro-me de ouvir falar no Vítor Damas, que voava. É o desporto que me leva a ser integrado pela sociedade. Era difícil aceitarem-me porque vivia numa barraca, mas através da bola lá fui conseguindo.

E porquê a baliza? Chegou a ser conhecido como o padeiro voador...

Tem claramente que ver com o traço psicológico. Adorava mandar-me para o chão, chegar onde os outros não conseguiam chegar, meter a cabeça onde eles tiravam o pé. Adorava mostrar aos outros que podia não ter nada que ver com eles, mas conseguia fazer coisas que eles não faziam. Não era pensado, nem consciente, mas adorava voar para a bola, não me pergunte porquê.

Vir de baixo dá uma força extra às pessoas?

Esse é um tema bastante discutido entre os treinadores. Posso dizer-lhe que se tiver de fazer uma contratação e tiver dois jogadores em tudo idênticos, mas que um venha de um crescimento difícil e outro de um crescimento salutar, vou escolher o do crescimento difícil. Mas custa-me pensar isso e se tiver de ser assim é muito mau. As referências, as vivências e as experiências que vamos tendo ao longo da nossa formação é que fazem o que somos. Não quero acreditar que isso seja um fundamento para o sucesso.

O que é mais interessante enquanto treinador, gerir personalidades ou as questões de técnica e de táctica?

Esqueça a táctica, são só uns pozinhos em cima do bolo. Numa acção de formação coloquei no quadro os meus quatro jogadores de campo numa ala. Se jogar com quatro jogadores num canto do campo e eles acreditarem até à morte, posso ter sucesso. Mas se montar uma disposição fabulosa mas se os atletas não acreditarem tenho a certeza que vou perder. Gerir pessoas é algo que adoro. Treinei centenas de jogadores e o que me fascina é ter sido importante naquilo que são hoje, principalmente enquanto homens, mas também como atletas.

Também o Kitó teve pessoas que o ajudaram a dar a volta.

Claro. Tive pessoas que foram muito importantes. O senhor Máximo, o senhor Borges, o José Manuel Cartaxo, então directores da União de Leiria, e que sabiam da minha vida. O falecido massagista Ferreira, a quem chamava avô. Treinadores como o falecido Adão, o Nini, o António Violante e o professor Mário. Mais à frente, na casa dos vinte e poucos anos e com a mania de que já sabia tudo, o Cremildo, o Armando Santiago, o senhor Rousseau e o Fernando Tomé, que foram extraordinários para a minha formação pessoal. E depois tive alguns treinadores, principalmente quando joguei fora de Leiria, que foram extremamente importantes, mas pelo lado negativo, para perceber que no dia em que tivesse uma equipa era precisamente aquilo que eu não queria que os jogadores passassem.