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Cláudia Freixinho Serrano: "Quando a guerra atinge a propriedade intelectual".
Advogada e Agente Oficial da Propriedade Industrial da J. Pereira da Cruz, S.A.
Já não é novidade que o conflito desencadeado com a invasão da Rússia à Ucrânia não é apenas um conflito armado, dado que, desde o seu início, se estendeu para o plano económico e financeiro, com a imposição de sanções à Rússia, por parte de muitos países, como meio para punir e pressionar aquela Federação.
Como retaliação, a Federação Russa tem vindo a adoptar diversas medidas, nomeadamente, com o intuito de restringir o uso de direitos de propriedade intelectual naquele território, que são direccionadas aos chamados “Unfriendly Countries” (Países hostis, na tradução literal) - entre os quais se inclui Portugal, juntamente com os restantes 26 Estados-Membros da União Europeia, a Ucrânia, os Estados Unidos da América, o Reino Unido e outros.
O Decreto do Governo da Federação Russa n.º 299, aprovado a 6 de Março de 2022, é uma dessas medidas.
Permitindo às entidades russas a utilização de invenções (patentes), modelos de utilidade e designs registados em território russo por detentores oriundos dos referidos “Unfriendly Countries”, no interesse da segurança nacional ou em proteção da vida e da saúde dos cidadãos, sem que para tal seja necessário pagar qualquer compensação.
A 8 de março de 2022, o governo russo aprovou outro diploma - a lei "Sobre alterações a certos actos legislativos da Federação Russa" (n.º 46-FZ), que trata particularmente de medidas económicas especiais em conexão com as chamadas “acções hostis” (tradução literal do termo usado no documento) relativas à imposição de sanções a indivíduos e empresas russas pelos Estados e organizações internacionais.
Em relação à propriedade intelectual, o referido diploma estabelece que em 2022 o Governo da Federação Russa tem autoridade para listar bens em relação aos quais as disposições do Código Civil da Federação Russa relativas à proteção de direitos exclusivos não podem ser aplicadas.
Ainda se aguardam decisões concretas que ponham em prática os referidos diplomas governamentais. No entanto, uma decisão muito recente de um tribunal russo que julgou improcedente um caso de alegada infracção de direitos de marca e de direitos de autor relacionados com o popular desenho animado Peppa Pig mostrou claramente que as autoridades russas não precisaram esperar pela entrada em vigor destes diplomas para pôr em causa direitos de propriedade intelectual em vigor.
De facto, o juiz do tribunal de Kirov, no nordeste de Moscovo, assumiu que as “acções hostis dos Estados Unidos da América e países estrangeiros afiliados” influenciaram a sua decisão.
Além disso, o governo russo e vários comités legislativos do parlamento russo, como reacção aos anúncios feitos por grandes empresas estrangeiras de software de que não renovarão as licenças existentes, estão actualmente a discutir a restrição dos direitos de propriedade intelectual para software de computador.
Uma medida desta natureza – que passaria, potencialmente, pelo afastamento da responsabilidade civil e criminal para aqueles que usam software pirateado pertencente a detentores de direitos de autores de países que apoiam e aplicam sanções - terá sérias implicações, dado equivaler a pirataria sem consequências legais.
Neste cenário, uma questão impõem-se: Perante estas medidas retaliatórias, o que pode ser feito? A Federação Russa é membro de vários Tratados Internacionais que são claramente violados com a adopção destas medidas, designadamente, a Convenção da União de Paris para a Protecção da Propriedade Industrial, o Acordo TRIPS – Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio e a Convenção de Berna Relativa à Protecção das Obras Literárias e Artísticas.
Todos os países da Organização Mundial do Comércio (OMC) se comprometeram a respeitar estas leis e a garantir que as empresas estrangeiras possam fazer valer os direitos de propriedade intelectual protegidos nos seus territórios, sob pena de se sujeitarem à imposição de sanções por parte do Tribunal da OMC, que incluem até a expulsão da Organização.
A OMC pode criar uma excepção de segurança, que permite que os países tomem qualquer acção que considerem necessária para proteger os seus interesses essenciais de segurança em tempos de guerra, no entanto, esta excepção nunca foi invocada no contexto de um conflito armado.
Tudo isto são previsões e possibilidades, face à conjuntura actual.
Resta-nos esperar que o fim do conflito esteja para breve e que permita relaxar a tensão entre os Estados envolvidos e pôr fim também a esta batalha que afecta a propriedade intelectual.