Sociedade
Analfabetismo: Mais de meio milhão de portugueses vivem o ABC da exclusão
Num mundo de smartphones e de realidade aumentada, ainda há muitos portugueses, jovens e menos jovens, que não sabem ler nem escrever. O JORNAL DE LEIRIA foi conhecer algumas dessas histórias
Quando Elisa e Maria Gabriela nasceram, quase se podiam contar pelos dedos os automóveis que circulavam nas estradas. As casas não tinham luz eléctrica, o homem não tinha conquistado o espaço e o televisor era um invento com o qual nem se sonhava ainda. Em 1938, Salazar liderava os destinos deste pequeno País, quando outras forças se conjugavam para o eclodir da Segunda Grande Guerra, que viria a estalar no ano seguinte.
Foi neste contexto, onde a pobreza e a precariedade dominavam a vida da maioria da população portuguesa, que ambas viriam a crescer. E a crescer tão rapidamente, que nem Elisa nem Maria Gabriela tiveram alternativa senão pular da infância para o mundo do trabalho, sem antes terem tido oportunidade, nem incentivo, para se sentarem nos bancos da escola.
As duas octogenárias fazem parte do número ainda muito expressivo de portugueses analfabetos que, em pleno século XXI, e apesar de bombardeados com anúncios de smartphones e notícias acerca de realidade aumentada, se vêem forçados a gerir os dias sem compreender a legenda do filme, o rótulo do champô ou a carta do banco.
Na semana em que se assinala o Dia Internacional da Alfabetização (8 de Setembro), o JORNAL DE LEIRIA foi conhecer os constrangimentos de quem vive sem conhecer as letras. Percebemos que o problema persiste entre várias gerações, faltando ainda políticas públicas capazes de estancar o fenómeno.
“Foram todos à escola menos eu”
É quase meio-dia e é apressadamente, de olho no almoço, que Maria Gabriela Silva fala sobre os tempos de meninice em que não foi à escola. Afinal, de que vale a pena falar agora nas letras, quando ao fim de 82 anos já se habitou a viver sem elas?
Maria Gabriela Silva, da Marinha Grande, foi a única, entre oito filhos, que não foi à escola. “No meu tempo ainda não era obrigatório ir. Então fiquei em casa a tomar conta dos meus irmãos”, explica a octogenária. Por sua iniciativa, aprendeu a fazer cálculos. “Sei fazer contas e ninguém me baralha em dinheiros”, conta Maria Gabriela, orgulhosa por ter conseguido sempre acompanhar outras colegas no emprego, quando tinha de contar material e carregar camionetas na fábrica de vidros Santos Barosa.
Também se recorda de ter aprendido a escrever o nome, mas não mais do que isso, porque os seus quatro filhos foram chegando e, sem ajudas, a prioridade era criar as crianças e trabalhar na fábrica.
Mas até isso de escrever o nome ficou no passado. “É muito grande e é difícil para mim”, justifica Maria Gabriela, que passou a preferir mergulhar o indicador na tinta e “assinar” com impressão digital.
Até enviuvar, o marido era o seu braço direito. Ele tinha frequentado o ensino primário e por isso, através dele, era mais simples tratar de consultas no médico e das idas ao supermercado. Quando ia sozinha, por orgulho, nunca quis perguntar nada a ninguém, admite a octogenária. Já nos últimos anos, são os filhos que lhe prestam apoio. “Até para me explicarem algumas coisas que aparecem na televisão”, exemplifica Maria Gabriela.
Nem na cidade aprendiam a ler
Menina da cidade, nascida há 82 anos no centro de Leiria, Elisa da Conceição Silva também não teve sorte diferente de Maria Gabriela. Entre filhos da parte da mãe, filhos da parte do pai, e filhos de ambos, Elisa teve 11 irmãos. E só uma minoria foi alfabetizada.
Ser da cidade ou do campo era praticamente indiferente, explica a octogenária. “O meu pai era bate-chapas na Marinha Grande e a minha mãe e a minha tia passavam os dias fora de casa a arranjar ferro velho para vender”, recorda Elisa. Durante os seus primeiros anos de vida, a mãe deixava-a numa creche para poder sair de casa e trabalhar. Não muito tempo depois, como ir à escola não era obrigatório, Elisa seguiu o trajecto da maior parte das crianças da sua geração.
Aos 14 anos já trabalhava como empalhadeira de garrafões. Tinha 19 anos quando voltou à escola, para adultos. E ainda chegou a saber escrever o nome. “Mas eu ia à escola com vontade de brincar”, recorda Elisa.
Além disso, a chegada do primeiro filho viria adiar para sempre o sonho de ler e escrever. Já casada e a residir na Marinha Grande, a jovem juntou-se ao marido no negócio dos candeeiros e passou a fabricar pingentes a partir de casa.
Casada há 64 anos com José Silva, Elisa explica que, com o apoio do esposo, que tem a quarta classe, visitou Portugal de ponta a ponta. “Ainda fomos a Espanha e a Marrocos”, acrescenta a octogenária.
Ao contrário de Maria Gabriela, Elisa nunca se coibiu de perguntar o que quer que fosse a estranhos, no dia-a-dia. Mas também adoptou alguns truques. No supermercado, fixam-se as imagens dos produtos habituais, para não haver margem de erro na compra. E na televisão, dá-se preferência a canais de sinal aberto, onde ainda se vai assistindo a muitos programas sem legendas, explica Elisa. À medida que a idade foi aumentando, a filha passou a ajudar ainda mais nas tarefas.
Contudo, conhecer bem o dinheiro e fazer contas são ainda hoje grande motivo de orgulho para Elisa. “Mas não há nada que chegue a uma pessoa saber ler e escrever”, remata esta avó e bisavó, para quem ver as novas gerações a entender os livros é uma grande emoção.
Mais medo e menos auto-estima
Elisabete Carreira é socióloga e membro do Gabinete de Apoio Psicossocial da Junta de Freguesia da Marinha Grande, que tem sido procurado por muitas pessoas que precisam de ajuda quer no preenchimento de documentos quer na interpretação de cartas emitidas por organismos públicos.
Entre as pessoas que solicitam ajuda estão analfabetos, que não sabem ler nem escrever, mas também pessoas que, embora tenham frequentado a escola ou tenham formação que lhes dá equivalência a determinado grau de ensino, continuam muitas vezes analfabetas do ponto de vista funcional, com muito poucas competências no que respeita a ler, escrever ou compreender informação.
Entre analfabetos ou analfabetos do ponto de vista funcional, Elisabete Carreira identifica muitas pessoas na casa dos 70 ou mais anos, mas também gerações muito mais jovens, pessoas de 40, e mesmo de 18 ou de15 anos. Percebe que são mais as mulheres que solicitam ajuda, sendo que entre os homens há mais relutância em admitir que têm necessidade de apoio. A socióloga reconhece que, comparativamente a 2006, ano em que começou a dedicar-se a este público, o problema do analfabetismo tem vindo a ser bem trabalhado, com resultados evidentes. Mas é preciso continuar a insistir, porque ainda se verificam situações recorrentes de abandono escolar.
A comunidade cigana na Marinha Grande, explica a socióloga, já não é nómada e fixou-se na cidade há muito tempo. São cidadãos da Marinha Grande, que têm cartão de cidadão e que em muitos casos já levam as crianças para a escola, até desde o ensino pré-escolar. No entanto, observa Elisabete Carreira, nesta comunidade a valorização do ensino não é tão grande que não abra ainda espaço para algumas situações de abandono escolar. E, como ainda é comum neste grupo, não causa especial embaraço.
A perda de auto-estima e também o med
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