Opinião

Polícia do passado

9 mar 2024 16:22

Em nome de uma pretensa virtude moral presente, condenamos a escrita criativa de outrora

Volta e meia dou com expressões, acusações e novas teorias com processos de correcção sobre atitudes tidas por antepassados colectivos. Não meus concretamente, nem de ninguém, mas todos arcando com um pecado original que nos vem de berço. Qualquer coisa que deriva do pensamento de que há uma culpa colectiva que tem que ser expiada aos dias de hoje. Curioso porque só encontro paralelo na vida de Cristo, que veio para nos salvar dum pecado inicial. Chegou ao cúmulo literário.

Em nome de uma pretensa virtude moral presente, condenamos a escrita criativa de outrora. Alguma até está a ser reescrita, como se de um acordo ortográfico se tratasse. Na passada semana foi a vez do filme Mary Poppins (1964), uma ama que cuida e endireita a vida dumas crianças orfãs com peripécias cómicas, tem novas interpretações de linguagem, considerada não adequada. Até aqui podia ser vista por crianças a partir dos 4 anos...

Não me lembro de alguma vez me sentir ofendida por ver o filme. Menos ainda pelos infindáveis serões com a Música no Coração, ou até mesmo com a tragédia do Bambi. Mas caricaturavam sentimentos e a vida em comparação ajudava-nos a construir pensamentos mais nobres. Mas o novo policiamento do passado só admite passados ideais e pedagógicos nos filmes de animação e considerados “para toda a família”. Não sei como sobrevivemos aos estereótipos infantis daquelas épocas, mas agora entramos na beataria multicultural que pouco ou nada transmite.

No livro, que também deu um filme, “O nome da Rosa”, temos um paralelo com a narrativa das heresias, o riso a ser proibido e densas tramas sobre mortes misteriosas por conta de leituras inapropriadas. Agora temos policiamentos públicos e censuras prévias, dedicadas a uma depuração do passado, sem qualquer enquadramento de tempo e espaço, época ou costume. É uma indústria invisível aquela que nos quer policiar a vida. No filme “Telma & Louise”, as duas excêntricas personagens entram no final do filme, numa loucura automobilistica.

Num futuro próximo, os carros terão o autocontrolo de não exceder velocidades e impedir devaneios. Entra na mesma esfera de controlo dos destinos e certamente de atitudes muito proibidas. Se houvesse uma polícia do futuro estávamos todos tramados. A protecção destas sensibilidades todas está a chegar a um extremo que já se torna paródia.

50 anos depois do 25 de Abril, recordo filmes ingénuos e inócuos que eram permitidos pelo lápis azul do regime, e chego à conclusão que não eram muito diferentes das inocências com que se querem as tramas aos dias de hoje. Precisamos de mostrar às novas gerações, um passado sem maquilhagem, de olhos abertos e com toda a carga de consciência que conseguimos ter no presente. Isso é válido para Abril mas também para a Mary Poppins ou James Bond.