Opinião

Pintar como quem medita

27 nov 2025 08:01

«Não é preciso gritar para ter impacto.» Celia Paul citada por Katy Hessel em A História da Arte sem homens, ed. Objectiva, 2024

Talvez tenha sido num desses artigos de jornal sobre a vida amorosa do pintor britânico Lucian Freud, conhecido pelas suas múltiplas amantes e pelos inquietantes retratos que delas pintava, ou numa deambulação pelas histórias de artistas plásticos cujo trabalho é marcado mais pela reserva do que pela exuberância, que vi pela primeira vez um auto-retrato de Celia Paul (Painter and Model, 2012). Uma tela ocupada pela imagem de uma mulher esguia, introspectiva e despojada, com uma expressão atravessada pelo silêncio e a intimidade, à qual é impossível ficar indiferente. Desde então são frequentes os momentos em que volto à sua obra gráfica quase como forma de meditação. 

Nascida em 1959, em Thiruvananthapuram, na Índia, e criada no Reino Unido, Paul cresceu entre geografias distintas. Talvez por isso as suas obras pareçam surgir de um lugar intermédio – uma espécie de fronteira entre memória e presença. Quando entrou na Slade School of Fine Art em Londres, escola frequentada por alguns dos mais célebres artistas do século XX entre os quais Paula Rêgo, encontrou o rigor técnico que viria a sustentar a sua pintura, mas também o espaço íntimo que, desde então, moldou o seu processo criativo: uma prática lenta, concentrada, quase meditativa.

Celia Paul, uma das derradeiras musas e amantes de Lucian Freud (seu professor na Slade e com quem teria um filho), optou desde cedo por trabalhar os temas que distinguiriam a sua obra e que a acompanhariam ao longo de toda a carreira – a intimidade e o silêncio. 

Marcados por figuras solitárias geralmente femininas, os seus retratos, essencialmente dedicados a quem conhecia profundamente – a mãe, as irmãs e ela própria –, afastam-se daquilo que poderia parecer dramatismo, revelando antes a profundidade singular de quem compreende que a intimidade raramente é sinónimo de ruído.

A mãe, em particular, ocupa um lugar central no seu imaginário. Pintada repetidamente ao longo de anos, torna-se quase numa entidade espiritual, feita de luz e sombra, de devoção e distância. 

Num mundo em que a arte procura o gesto espectacular, a obra de Celia Paul caminha na direcção inversa. Não aceita retratos por encomenda, não se deixa capturar pelas tendências, não procura a notoriedade circunstancial. 

Essa integridade dá à sua obra uma coerência invulgar. Cada figura é abordada como quem se aproxima de um segredo: com delicadeza, paciência e escuta. 

Embora conhecida sobretudo pelos retratos, o mar é outro dos seus grandes temas. As suas paisagens marinhas são autênticos exercícios de contemplação onde a água surge como metáfora de identidade em mutação.

Ainda activa, Celia Paul tem acompanhado o seu trabalho artístico com uma crescente produção literária. Nas suas obras autobiográficas e epistolares, Paul procura revelar o que as suas telas sugerem: a relação entre criação, solidão, família e perda; o modo como o passado se anuncia subtilmente, em cada pincelada.

Celia Paul escreve e pinta para ver. Para ver melhor os que ama, os que perdeu, os que se tornaram memória. E, ao fazê-lo, oferece-nos uma forma de olhar que resiste ao ruído do presente e que se funda no valor do silêncio e do tempo.