Opinião

País em chamas

23 ago 2024 11:20

Não pensemos só nas feridas físicas, mas curemos igualmente as emocionais

Todos os anos parece que assistimos ao mesmo cenário de flagelo com os incêndios (em Portugal e no mundo). Às vezes questiono-me: ainda há floresta em Portugal para arder? 

Mais uma vez assistimos a cenários dantescos de desolação como estamos a ver na ilha da Madeira. E antes de pensarmos só em contabilizar as perdas materiais, temos de olhar para a perda humana. A perda da vida dos próprios e os efeitos perversos das perdas nas famílias (seja perda de familiares, de bens, animais ou casas). 

O que fica depois disto? Muito trauma para lidar e lutos difíceis de superar. Como erguer uma vida inteira depois das cinzas? Como aceitar muitas das vezes quando essas perdas tiveram mão criminosa e não parece haver nunca justiça suficiente para reparar a perda?

Nestas alturas do ano lembro-me sempre do caso de uma menina de 9 anos que atendi há cerca de 10 anos também no Verão. Tinha medo do fogo e de deixar a mãe sozinha em casa. No Natal anterior a casa dos vizinhos tinha ardido (fogo posto ou acidental ninguém sabia). Os vizinhos felizmente não estavam em casa nesse dia. A casa dela era rodeada por pinhal e ela vivia em pânico sob a perspetiva de perder a mãe num fogo. A ironia do destino é que o pai desta menina era bombeiro voluntário e ela não tinha medo de perder o pai num fogo pois achava que ele era invencível. 

Como a ajudei? Na verdade, não foi uma intervenção difícil. Foi basicamente capacitar a menina para readquirir a sensação (ainda que ilusória) de controlo. O pai ensinou-a a apagar fogos no quintal e levou-a para ser bombeira voluntária e a mãe ensinou-a a ligar para o 112 em caso de necessidade. Progressivamente perdeu o medo. 

Porque vos conto estas estórias e o que tem a ver com o que assistimos atualmente? O trauma aparece sob várias formas e nasce da mesma raiz: o medo. Esse medo que nos protege do perigo, mas muitas das vezes se cola a nós como uma segunda pele. E ficamos com resquícios dele em nós, a contaminar com mais ou menos força o nosso dia-a-dia.

E nesses momentos é necessário passar por um processo de superação do medo, de reaprendizagem do que é estar seguro no mundo e às vezes na nossa própria pele. Não pensemos só nas feridas físicas, mas curemos igualmente as emocionais. 
Por último queria deixar-vos com a seguinte mensagem: sim, é possível renascer das cinzas. 

Texto escrito segundo as regras do novo Acordo Ortográfico de 1990