Opinião
Não contem comigo!
Em duas semanas já houve deportações em massa de “criminosos”, fundos públicos ilegalmente congelados, tarifas alfandegárias a vizinhos, e aviões que caiem devido à preferência sexual de pessoas
A língua portuguesa é cheia de expressões carregadas de subtileza que exigem uma certa mestria da linguagem que só falantes experientes detêm. Um estrangeiro que ainda domine mal a língua portuguesa e ouça que “o Zé amarrou o burro” certamente acharia que o Zé atou um asno. Ou ao ouvir que “a Maria engoliu um sapo no trabalho” interrogar-se-ia porque diabo a Maria teria deglutido um batráquio.
Aliás, a preocupação com a gastronomia portuguesa poderia ser ainda mais agravada se o estrangeiro ouvisse que a ementa do jantar eram “línguas de perguntador”! Já para não falar de expressões com um travo de chauvinismo como “fazer um negócio da China”, “ver-se grego” para alguma coisa, ou insinuar que “anda mouro na costa”, tudo formas perfeitas de deixar um estrangeiro aterrado com a nossa insensibilidade!
Estas expressões são indicadas para dar ênfase e colorir conversas, mas são também ótimas para suavizar mensagens. “Procurar uma agulha num palheiro” é mais suave do que “estamos desesperados”, e alguém sugerir que “chega a roupa ao pelo” a outra parece quase amigável e carinhoso, e não algo ouvido na Assembleia da República a propósito de malas perdidas!
É também nessa senda suavizadora que vem a expressão “não contem comigo!” É muito mais suave do que “não quero ter nada a ver com isso”, ou “nem te atrevas a misturar-me nessa confusão”, ou ainda “prefiro comer uma côdea de pão duro do que ir a esse jantar com os teus amigos!”
Aquilo que pode parecer cinismo ou, no mínimo, dificultar inutilmente a comunicação é, muitas vezes, essencial para manter uma relação cordial e urbana com colegas de trabalho, amigos, e família. Diria mesmo que uma dose certa de cinismo é uma competência social invejável!
Aproveitando os caracteres que me restam, queria anunciar que não contem comigo para entrar no turbilhão infernal de notícias e desespero causado por todos os disparates ditos por Donald Trump. Em duas semanas já houve deportações em massa de “criminosos”, fundos públicos ilegalmente congelados, tarifas alfandegárias a vizinhos, e aviões que caiem devido à preferência sexual de pessoas.
Ora, este vórtice destina-se apenas a fazer um número de ilusionismo: deixar-nos todos a discutir o que ele quer – enquanto se dedica a outros temas, mais graves. E a esse esquema, tão bem copiado em Portugal, eu digo “não contem comigo!” É que, além de competência social, dizer subtilmente “não deixo que me arrastem para esse lamaçal” é também um fabuloso tónico para a saúde mental.
Texto escrito segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico de 1990