Opinião

Passagem de letras

16 ago 2024 16:24

Para quem não tem ideias, sugiro a visita a passadiços

Estamos naquela altura do ano em que, invariavelmente, nos dizem “sabe como é, mete-se Agosto...” E como não se consegue fazer grande coisa produtiva, neste período de canícula pode viajar-se para matar o tempo, por exemplo indo para fora cá dentro. Para quem não tem ideias, sugiro a visita a passadiços.

Existem centenas de quilómetros de passadiços no País – tem havido uma multiplicação impressionante ao longo dos últimos anos. Muitas vezes os passadiços culminam num baloiço, certamente com um enquadramento apelativo a influencers amadores e profissionais.

No caso de o caro leitor não saber onde desfrutar do prazer de caminhar em cima de um estrado de madeira tratada, a minha sugestão é que faça 20 quilómetros em qualquer direção (aleatoriamente escolhida) a partir do ponto onde se encontra neste momento. Encontrará uma combinação passadiço-baloiço e poderá iniciar as suas atividades de influencing.

E, caso tenha algum problema a criar a hashtag correta, precavidos autarcas instalaram letras identificativas das localizações. Aliás, hoje em dia não é necessário parar numa qualquer estrada nacional para perguntar a um transeunte como se chama a localidade: não há freguesia do País que não tenha a sua versão das letras de Hollywood – mesmo que no enquadramento tenham casas de banho públicas (exemplo real, para o caso de o caro leitor pensar que a minha imaginação está delirante).

Aos poucos, os responsáveis pelo ordenamento e gestão do território vão tornando cada recanto numa “atração”. Um pequeno desnível ganha um passadiço, um marco geodésico recebe a companhia de um baloiço, uma rotunda é adornada com letras em estilo Hollywood. E, claro, cada queda de água necessita de ser transformada e urbanizada “por motivos de segurança”.

Pensando melhor, ainda bem que temos letras em estilo Hollywood a identificar localidades. A pretexto de atrair visitantes, o território vai ficando cada vez mais igual, mais homogéneo. E, pior ainda, tudo com um estilo canhestro e ostensivo (“in your face”, como se diz em inglês). Todos os lugares – e não só em Portugal, mas também pelo mundo fora – se vão transformando aos poucos num gigantesco parque de diversões, com instruções e sem espaço para usufruir, apenas.

As singularidades, subtilezas, e elegâncias não têm lugar no mundo de scroll infinito movido a dopamina. As palavras de ordem são “Aqui. Agora. Já. Entretém-me. Diverte-me.” E se não for possível, nós vamos fingir imensa alegria para mostrar ao mundo que nos vê nas redes sociais.

Texto escrito segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico de 1990