Opinião
Letras | Se a memória não nos falha
O arrebatador bordado literário chamado A Louca da Casa, da autora espanhola Rosa Montero
Afirmou o neurocientista António Damásio, numa cimeira internacional sobre o Alzheimer, que “a memória serve para recordar o passado, lidar com o presente e também para prever o futuro”.
O arquivo precioso e essencial à nossa existência lida diariamente com ameaças: lapsos, quebras, brancas, falhas. Nada que escape, no entanto, ao olhar astuto dos senhores do marketing e do negócio que, com os seus miraculosos suplementos, nos prometem memória de elefante.
Enquanto se aguarda o milagre, a memória vai-nos atraiçoando e prega-nos rasteiras, sem que nos apercebamos. As “ilusões de memória” têm sido alvo de diversos estudos. Memórias falsas ou distorcidas e memórias verdadeiras nem sempre se distinguem claramente no nosso cérebro.
Que atire a primeira pedra (com jeitinho) quem nunca disse “lembro-me como se fosse hoje”, sem acrescentar um criativo pozinho da sua própria ilusão à memória relatada.
Ainda bem que existem os “auxiliares” de memória para nos ajudar no processamento de toda a informação acumulada diariamente. Valham-nos os livros, os cadernos, os telemóveis e as câmaras fotográficas.
Quando lia o arrebatador bordado literário chamado A Louca da Casa, da autora espanhola Rosa Montero, senti a memória ameaçada. O empático livro, vestido de romance, ensaio e autobiografia, relata, entre histórias pessoais e de outros escritores, o encontro da autora com M., um actor famoso que não se revela.
M. regressa, em jeito de dejá vu, para nos dar a volta ao miolo, levando a crer num possível erro de edição. Mas não; é Rosa Montero a surpreender os leitores com outro desfecho para a mesma história. Fica por se saber qual é a versão – a mais sonhadora ou a mais realista – que corresponde à verdade da sua memória.
E na verdade não importa, porque Montero, que revela por distintas vezes o seu fascínio por anões, prometeu e cumpriu (ainda bem) ser a Louca da Casa.