Opinião
Letras | Richard Zimler (2005), Goa ou o guardião da aurora OU o medo e a traição…
"Será que os sentimentos mais importantes existem tão abaixo da superfície da vida quotidiana que não são afetados pelo tempo?"
SE O LEITOR de Richard Zimler (n. 1956), ainda não tiver mergulhado em Goa ou o Guardião da Aurora (2005; 2018 – 1ª ed. Porto ed.) vai encontrar a tão marcante temática do judaísmo e das múltiplas perseguições sofridas, mas, sobretudo, a inimitável arte de trabalhar a psicologia de cada uma das personagens e de a tornar um ‘ser de carne e osso’, repleta de contradições e à beira de situações-limite. Com a tradução francesa (Le Gardien de L'Aube), foi-lhe atribuído o prémio literário Alberto Benveniste 2009, destinado a romances em língua francesa enquadrados no programa do Centro A. Benveniste (Estudos Judeu-Sefarditas). Zimler recebeu o galardão no dia 26 de janeiro de 2009, na Sorbonne.
Neste romance, situado nos finais do séc. XVI e inícios do XVII, tudo gira à volta de uma família sefardita a viver perto de Goa: o pai e os filhos Tiago e Sofia (que perderam a mãe por volta de 1575), descendentes do cabalista Berequias Zarco, iluminista em Lisboa, obrigados a fugir à Inquisição e iniciar o processo da diáspora sefardita. A profissão continua a ser a mesma dos antepassados, agora ao serviço do sultão, até que o pai acaba por ser preso por ordem da Inquisição. Tiago procura ajuda junto do tio Isaac, irmão do seu pai e casado com a católica apostólica tia Maria, pais adotivos de um inquietante rapazinho muçulmano, Wadi (Francisco Xavier).
A estrutura arquitetónica do livro funciona por avanços e recuos; porém, a memória do narrador Ti (diminutivo pelo qual era conhecido em família) parece ser sempre o núcleo a partir do qual a narrativa se vai (re)escrevendo. O leitor tem que ter a paciência e perseverança fundamental para encontrar uma linha cronológica organizada que lhe permita compreender os indícios iniciais de algumas iluminuras, por exemplo, e relacioná-los, metaforicamente, com os horrores que – primeiro o pai e depois o filho – conhecerão nas prisões da Inquisição, e os demónios que a traição (todas as espécies de traição…) sempre traz(em) colados a si.
Depois das suas muitas provações e cumprida a pena de degredo de cinco longos anos, Tiago perdeu quase tudo (envenenamento do pai; morte da irmã; amada Tejal casada com outro…) e autoanalisa-se, com toda a consciência que o sofrimento e o desejo de vingança lhe trouxeram:
[…] Será que os sentimentos mais importantes existem tão abaixo da superfície da vida quotidiana que não são afetados pelo tempo? Afinal de contas, podemos amar alguém com o mesmo fervor após vinte anos de ausência. E odiar, também.
Era nesse reino intemporal que eu agora vivia, e nesse sítio escuro tudo estava misturado: o dentro e o fora, o passado e o presente, até o bem e o mal. Embora esteja disposto a admitir que se trate apenas de uma desculpa fácil para o sangue que pouco depois me mancharia as mãos… […] (opus cit., p. 359)
Talvez a escrita seja aquilo que permite fugir à morte. E é possível que, com esta investigação dolorosa aos meandros da traição dentro de cada um de nós, Zimler tenha querido fazer uma justa homenagem às inúmeras vítimas do antissemitismo desde o seu fulgor inaugural e que se perpetuariam por tão longos séculos. Com este livro, o escritor criou alguém – um judeu assumido e ‘camuflado’ em função das exclusões do seu tempo – que escapou às malhas da morte e do esquecimento, depois de ter presenciado a fuga da vida: seja através do medo ou das traições.
Artigo escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990