Opinião
Cada um é muita gente: Quem é
Imagino que seja um jornal - está num saco de jornal. Pode ser outra coisa qualquer, para um homem, para uma mulher, para um gato que goste de ler…
Sobre ninguém. Na verdade, sobre alguém que eu nunca vi - eu não ter visto alguém não quer dizer que esse alguém não exista, não seja. Mas há quem seja ninguém, mesmo existindo. E talvez esse alguém, que pode ser ninguém, insista em ser aquilo que é - mesmo que uma negação. As negações também existem - tudo o resto é que não.
Esta negação, ou inexistência, insiste em deixar, todas as semanas, o jornal pendurado na porta de alguém - que também poderá ser ninguém, que eu nunca vi (ou já terei visto, mas não terei ligado ao jornal pendurado na porta). É, também, uma inexistência. Ou uma existência morta - tudo da minha visão, sim, que, para mim, só existe o que eu vejo e não o que eu posso ver - se calhar, só vejo o que posso ver, assumindo que exista qualquer coisa, uma inexistência, que me autorize a visão. Talvez não. (E o que é isso de ver?) Não assumo essa utopia, essa ilusão.
Esta pessoa, a que deixa o jornal, deixa o jornal durante o dia. Não entra em casa, não toca à campainha - tudo suposições da minha cabeça. Imagino que não entre em casa, que não toque à campainha. A dona da casa, que também imagino ser a dona da campainha, e que também imagino ser dona, não espera que anoiteça para lá ir buscar o jornal.
Imagino que seja um jornal - está num saco de jornal. Pode ser outra leitura qualquer, para um homem, para uma mulher, para um gato que goste de ler… Pouco importa. O jornal, vamos assumir que o é, pendurado na porta, fica ali o dia inteiro como se estivesse no café - só lhe falta um cigarro e um cinzeiro. O jornal existe? E a pessoa que o foi lá deixar, um homem ou uma mulher, existe também? (Isto da existência não me faz bem.)
Essa pessoa - existe, sim - tem o cuidado, o carinho, o contentamento - seja lá o que for - de deixar o jornal a alguém que não o consegue, ou que não o quer, ir buscar. É bonito ver uma coisa assim - pelo menos, para mim, que imagino que, além de um alguém e de outro alguém, seja um jornal para quem o queira ler. E, existindo ou não, isto da afeição é mais do que razão para alguém, ou ninguém, ser.