Opinião
Cada um é muita gente: Ele e ninguém
Bebe mais um pouco, olha em volta, fala para um lado, fala para o outro, fala em frente, vira-se para trás e dá um grito. Volta à cerveja, voltando um bocadinho a si
Sozinho, com tanta gente. Bebe a cerveja devagarinho, intermitentemente. A vida dele não é poesia. É qualquer coisa rude, amarga, que lhe acontece todos os dias. Vejo-o caminhar pela cidade sempre sozinho, mas sempre acompanhado pelas pessoas que ele vê e com quem fala. Depois, senta-se no café, como se estivesse rodeado de gente.
Vem o empregado, ele fala, também, com o empregado, pede uma cerveja e continua a conversa com todos os amigos que tem ali à volta. Não tem amigos ali à volta - pelo menos, eu não os vejo. Mas ele fala como se eles ali estivessem - e talvez até estejam.
Tem longas conversas que eu não percebo, sorri, ri, enerva-se, levanta a voz. Mexe os braços e inclina o corpo para sussurrar qualquer coisa a qualquer pessoa que ali esteja. Leva, à boca, a cerveja. Bebe muito. Já tem pouca. Olha para o amigo, olha para a cerveja, e bebe o resto.
Continua a conversa com quem ele vê, e encosta-se na cadeira. Levanta o braço, volta o empregado e volta o pedido. Na verdade, ele não diz nada - apenas levanta o braço segurando o copo. O empregado percebe, claro que percebe, todos os empregados percebem, toda a gente percebe, e regressa com um cheio. Coloca o copo na mesa, pega no copo vazio e volta para o balcão.
Entretanto, tantas conversas com aquela multidão. Ela não se vê, é um exército de fantasmas que ali está, alinhado, pronto para qualquer ordem de ataque. Bebe mais um pouco, olha em volta, fala para um lado, fala para o outro, fala em frente, vira-se para trás e dá um grito.
Volta à cerveja, voltando um bocadinho a si. Já não fala. Olha em frente, como se olhasse para dentro. Fica assim durante uns instantes, parecem muitos, parecem longos, parecem infinitos.
Eu olho para ele de longe e vejo que ele, mesmo olhando, não olha para lado nenhum. Mexe os lábios devagarinho, mas não fala - parece dizer qualquer reza que sabe de cor, que lhe silencia todas aquelas vidas que lhe existem ao redor. Volta a parecer um homem a beber uma cerveja. Talvez esta seja a solidão mais só.