Opinião
Cada um é muita gente: Um passado
Bem vestido, postura firme, barriga saliente. Ninguém fala com ele, e ele, discretamente, vai ouvindo e vendo o que se passa, fazendo o que eu faço também, inventando histórias das pessoas que aquele lugar tem
Tem cara de Adelino. É dos olhos, da boca, do nariz, mas, essencialmente, do nada que ele diz enquanto está ali encostado àquela porta. Tem cara de Adelino. Na verdade, não sei bem por que razão. Mas é como se ele rejeitasse todos os nomes, e aquele não. Adelino, um abraço de velho com menino. Um só, eles os dois, ali bem vestido, olhando as pessoas a passar, olhando as pessoas a dançar, mas parecendo olhar o tempo que vê a contar.
Em casa, certamente, terá alguém. Uma mulher que o espera vendo televisão ou que não o espera, de todo, sabendo que ele vem, um bocadinho mais tarde, como o Pessoa, p’ra ao pé do seu coração. Ele agora está ali. É de noite, e eu não sei quem é. Olho para ele, e tento descobrir qualquer coisa, ali, de pé.
Já é um senhor de alguma idade - como se todos os senhores não fossem de alguma idade, seja ela qual for. É de noite, e ele parece não pertencer. Mas há qualquer coisa de amor, de enternecer. Uma imperial na mão direita e um vazio na mão esquerda, que ora vai ao bolso, que ora fica suspenso no ar. E ele, ali, a olhar.
As pessoas dançam, as pessoas falam e bebem. Ele, bem mais velho do que todas elas, como se fosse uma estátua dos que já foram, uma representação dos que já não estão ali, um guardião dos que passam por ele, brincando, rindo, cantando, e ele sereno, como se o seu único propósito fosse ocupar aquele espaço junto à porta, ora do lado de dentro, ora do lado de fora. Quieto, sem ir embora.
O Terreiro tem ali a sua gente concentrada, nos Filipes, e ele à entrada. Bem vestido, postura firme, barriga saliente. Ninguém fala com ele, e ele, discretamente, vai ouvindo e vendo o que se passa, fazendo o que eu faço também, inventando histórias das pessoas que aquele lugar tem.
De cabelo branco, cara enrugada, olha e vê tanto, olha e vê nada. Mais uma cerveja para entreter o que ele deseja compreender. Tanta gente e ele sem ninguém, certamente em casa o espera alguém. E ele lá há-de ir, assim meio a sorrir, assim meio menino. Não parece fingir. Tem cara de Adelino.