Opinião
Klara (nós) e o Sol
Num romance que acontece num tempo indeterminado, o autor antecipa com igual mestria um tempo, esse sim, que já adivinhamos e em que emergem questões éticas profundas.
Klara, um robot criado para fazer companhia a crianças resolvendo-lhes a solidão, age por acumulação de dados que reúne da observação dos dias de Josie, uma pré-adolescente frágil que alterna momentos de alguma normalidade com períodos de doença.
Klara observa Josie, a mãe dela, as relações que estabelecem com a empregada que regula o lado prático dos dias, o pai, os amigos, o trabalho, os vizinhos e um artista obscuro que ao longo de todo o livro procura fazer obsessivamente o retrato perfeito de Josie sem que se conheçam as suas motivações.
Klara precisa de energia solar para funcionar em pleno e, ao recolher dados sobre a sua dependência do sol, desenvolve a ideia de salvação, esperança e regeneração.
Klara transporta esse conhecimento acumulado para a relação que mantém com Josie, que acredita poder curar através do sol. A doença que fragiliza Josie decorre de um aperfeiçoamento genético de risco. A mãe de Josie vê em Klara o prolongamento da filha caso ela sucumba ao apuramento científico que a adoece.
Klara é uma promessa de reencarnação de Josie em resposta ao desespero da mãe que já sofreu perdas para o triturador dos apuramentos artificiais da espécie.
Esta é apenas uma aproximação ao novo romance de Kazuo Ishiguro, Klara e o Sol (Gradiva, Março de 2021) que acaba de sair entre nós. Um livro que reafirma o talento do autor, já revelado antes da atribuição do Prémio Nobel de Literatura, ou do Booker Prize.
Aos 66 anos publicou oito romances e continua a preferir estar entregue ao seu trabalho, a dedicar-se a toda a exposição pública para a qual é pressionado.
Com uma linguagem aparentemente simples, Ishiguro trata com uma profundidade rara as relações humanas, a alma, a solidão, uma remota ideia de amor fraterno e redentor.
Num romance que acontece num tempo indeterminado, o autor antecipa com igual mestria um tempo, esse sim, que já adivinhamos e em que emergem questões éticas profundas.
Até onde pode chegar um andróide no que respeita à compreensão de sentimentos, à criatividade e ao prolongamento da vida? E a que custo? Que sociedade emergirá de um mundo que torna possíveis aperfeiçoamentos genéticos com vista a uma ascensão social, e não só, profundamente desigual? O que nos distinguirá (ou salvará?) de uma máquina que, mediante a observação ilimitada dos nossos comportamentos, seja capaz de tomar decisões autonomamente?
Klara e o Sol é um daqueles romances que vai perdurar na mente de quem o lê. Não só pelas interrogações filosóficas que postula mas também, e aí reside a meu ver o grande virtuosismo de Ishiguro, ao tornar tão intimamente próximas de nós personagens que habitam um espaço e um tempo desconhecidos, o que já fizera de forma exemplar num dos seus anteriores romances (Nunca me deixes, Gradiva, 2005).
Quando, a certa altura, a gerente da loja onde Klara foi comprada a reencontra, ambas conversam sobre como tudo correu com a sua família de acolhimento sublinhando a raridade das qualidades que Klara sempre revelou.
No momento em que se despedem Klara diz que prefere ficar entregue ao sol e às suas memórias em vez de ir para junto dos outros andróides. Nesse instante olham ambas para o sol. A gerente despede-se e afasta-se seguindo o seu caminho.
Klara espera que ela olhe para trás e lhe acene por uma última vez, o que não acontece.
E é aqui que Ishiguro nos deixa. Em suspenso, a amar Klara-o-robot-já-obsoleto, e a temer pela sua degenerescência e fim. A interrogarmo-nos acerca da nossa já camuflada humanidade. A temer, também nós, pela nossa degenerescência e fim.