Opinião
Efémera, a menina franzina, feia e fraca
Havia essa crença, a de que criança batizada antes da morte, se tornaria anjo
Há muito tempo, numa povoação raiana, havia um homem a quem todos recorriam por considerarem ser o mais sábio face ao vocabulário que quase todos desconheciam, mas que ele usava com confiança e cheio de certezas.
Chamavam-lhe Ti Mónico e era ele quem dava os nomes aos nascidos, por lá. Dava-lhes nomes pomposos e raros, roubados, dizia ele, à realeza que conhecera quando viajara pelo mundo.
Um dia, nasceu uma menina franzina, feia e fraca a quem não se augurava longo futuro.
Ti Mónico, chamado à pressa, apareceu para dar nome à criança antes que ela partisse para outro mundo. Havia essa crença, a de que criança batizada antes da morte, se tornaria anjo. Ao contrário, vaguearia, para sempre, errante, num purgatório cinzento e enturvado a que partisse sem o sacramento.
«Ui!» disse Ti Mónico, assim que a viu, «Vai ser efémera!»
E nem mais uma palavra da boca sábia daquele homem saiu depois de tocar na miúda. Emudeceu para sempre, partindo deste mundo, naquele mesmo instante, deixando o futuro da miúda, inevitavelmente, ligado ao fim do seu.
Efémera, nome pomposo, embora desconhecido, foi o nome que lhe foi dado.
No dia batismo da criança, enterrou-se, simultaneamente, Ti Mónico e, a partir daí, Efémera, menina franzina, feia e fraca, foi anatematizada arcando com as culpas da partida do ancião.
Vivendo apartada da vida da aldeia, o dia em que teve de entrar na escola, inevitavelmente, chegou. Cabisbaixa, só e triste, caminhou para um lugar no fundo da sala, distante de todos.
O professor foi perguntando o nome a cada um dos alunos e ela, de voz bem baixa e tímida, respondeu:
- Efémera Dores da Cruz!
Todos as crianças se riram. Vinham recomendadas de casa para que nem uma palavra trocassem com a bruxa.
O professor olhou-os, ameaçador, refreando, os ânimos de quem, sabia ele, tudo faria para continuar a chacota.
- Efémera, porquê?
A voz dele era doce e melodiosa como o chilrear dos pássaros e o correr do rio que ouvia junto à sua casa. Levantou os olhos, surpreendida. Nunca ouvira tanto açucarado numa frase.
- É um nome esquisito, não é? Sei que sim. É porque vive em mim o mal!
- Vive em ti o mal? Ela olhou em redor, acabrunhada.
- Todo o mal. Matei o Ti Mónico, o homem mais sábio da aldeia. Morreu assim que pôs os olhos em mim. Dizem que eu é que devia ter morrido porque era muito pequena, feia e fraca e pensaram que eu não sobreviveria. O Ti Mónico disse «Vai ser efémera!» e depois morreu.
O professor enterneceu-se face à explicação daquela criança sofrida.
- O Ti Mónico morreu porque tinha de ser e, tenho a certeza, que o teu nome surgiu de um grande malentendido. «Vai ser efémera!» quer dizer que vai durar pouco tempo como os pequenos insetos que não vivem mais de um dia…
E assim é! Palavras sestrosas, lustrosas e pomposas não são sinal de sapiência. Sinal de sapiência é evitar as palavras sestrosas, lustrosas e pomposas que, efetivamente, sabemos possuir, quando quem nos escuta, não as entende.
Texto escrito segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico de 1990