Opinião

O bailado de Gualter, a folha…

6 fev 2025 16:24

A tarefa de Gabriela passava de geração em geração e, quando a folha anciã começou a ficar enrugada, amarelada e frágil, chamou Gualter

Havia, junto a um moinho, uma árvore centenária e frondosa, de copa redonda, tronco largo e forte cuja folhagem era liderada pela sábia folha anciã, Gabriela. Gabriela tinha como função controlar a queda das folhas e formar professores para ensinarem às recém-nascidas folhas todas as técnicas para se manterem firmes face a intempéries, a fim de evitar quedas imprevisíveis que poderiam pôr em causa o nobre trabalho de embelezar o ambiente, dar sombra, privacidade e abrigo a animais e pessoas.

A tarefa de Gabriela passava de geração em geração e, quando a folha anciã começou a ficar enrugada, amarelada e frágil, chamou Gualter, seu neto, para assumir o seu papel quando ela definhasse. Desde tenra idade que Gualter fora preparado para este trabalho, pois, os seus pais, a quem, pela ordem de sucessão, caberia este cargo tinham sido levados por uma terrível pandemia que durante dois anos devastara a Terra.

Para a anciã, a educação de Gualter tinha sido uma verdadeira dor de cabeça, pois a folha nunca se interessara pelo poder e fugia, a sete pés, de tudo o que significasse responsabilidade. Preferia baloiçar por entre as outras folhas, esconder-se nos buracos da madeira, e dançar, dançar muito, rodopiar pelo ar, liquidificar-se no espaço, esvoaçar, sem nunca, no entanto, perder o vínculo à árvore que o sustinha. - Ganha juízo, Gualter, - aconselhavam-no os habitantes da árvore - Um dia ainda cais e jamais ocuparás um lugar privilegiado e altaneiro como este.

E de todas as vezes que o vento soprava, a chuva escorria, a neve cobria cada poro daquela árvore Gualter fincava os pés e as mãos no ramo como se uma cola de contacto invisível o prendesse à vida. Um dia de primavera, porém atipicamente gelado e ventoso, Gualter, lá do alto olhou para o chão e o que viu arrefeceu-o por dentro.

Uma pequena ave, praticamente sem penas, provavelmente nascida havia poucos dias, estava prostrada num chão gelado e, ainda, sem flores. A esvoaçar do ninho para o chão e do chão para o ninho, onde outras crianças se encontravam a mãe, alvoroçada, suplicava por ajuda. Gualter olhou para a avó. - Sim, vai! És o único que, com as tuas aptidões para a dança e bailado, conseguirá auxiliar. Então, Gualter sorriu, afrouxou a força que fazia para não ceder ao vento e, em perfeita simbiose com a aragem fria, deixou -se levar, controlando cada movimento, conferindo e recalculando a rota, atingindo, suavemente o chão.

Depois, entre rodopios, piruetas, alongamentos, flic-flacs e afins, colocou-se sob o pequeno ser que, percebendo a urgência do momento se tornou imponderavelmente leve permitindo que a progenitora os transportasse, a ambos pelo ar fora. Assim, e contrariamente ao que haviam vaticinado os residentes, a verdade é que Gualter voltou ao lugar privilegiado e altaneiro que abandonara, ocupando, então, orgulhosamente e com responsabilidade, um ninho quente e acolhedor situado naquela centenária e frondosa árvore de copa redonda, junto a um moinho. 

Texto escrito segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico de 1990