Dicionário improvisado

Céu
Não receava que o céu lhe caísse em cima. Se isso acontecesse, levá-lo-ia para casa e convidá-lo-ia a ficar durante o tempo que desejasse. Sim, gostaria que o céu vivesse em sua casa; que chovesse e estrelasse e enublasse dentro de sua casa; gostaria de o ouvir falar de pássaros, de guarda-chuvas, de arco-íris; gostaria de o ouvir rir. Gostaria de lhe dizer: boa noite, até amanhã.

 

Improviso
Um pássaro levanta voo. Não sabe onde irá pousar; nem quando; nem porquê. Mas pousará.

 

Ligação
Para quê guardar e recordar impressões e pensamentos? Para quê tentar manter uma ligação àquilo que passou? É como se um pássaro fizesse questão de registar: no dia tal pousei na árvore tal e estive lá alguns minutos, durante os quais pensei em que árvore deveria pousar de seguida; depois levantei voo e pousei noutra árvore. Que importa para onde voam os pássaros? Que importa em que árvores pousam, desde que voem?

 

Memória
Tal como os sonhos, a memória é caótica e incontrolável. Como podemos basear a nossa vida em algo tão errático e impalpável, tão pouco fiável, tão indefinível e transitório, como uma memória? Ou como um sonho. Talvez as memórias e os sonhos se confundam, se misturem, se contagiem. O que é memória e o que é sonho? Como se distinguem da realidade? Lembras os tempos em que um abraço nos salvava o dia? Ainda sonho com o teu abraço. Ainda sonho memórias.

 

Passagem
O rio passa pela cidade. Continua sempre a passar, é esse o seu destino: passar e nunca parar. Mas tem saudades de quando as crianças saltavam para dentro das suas águas, acompanhadas de gritos e risos; tem saudades das crianças que nadavam; saudades do toque; saudades da companhia; saudades da ilusão de paragem.

 

Ponte
Viver a vida intensamente, dizem. Cada momento é precioso, dizem. Mas será mesmo assim? E se a vida estiver repleta de momentos mortos, momentos que apenas servem para fazer número e compor as estatísticas da existência? Pontes que ligam os momentos realmente preciosos. Por vezes, acontece um momento intenso e pleno; e depois, dias de apatia e automatismo, dias de piloto-automático. Dias como hoje. Ou ontem. Talvez amanhã. E tudo o que há a fazer é ir atravessando as pontes.

 

Tempo
É absurdo que existam calendários. Que se aprisionem assim as vidas. Que se condicionem os sentimentos e as emoções a números, a escalas, a formalismos, a padrões, a conceitos. Sexta-feira vamos estar juntos. Sexta-feira vamos abraçar-nos. Sexta-feira seremos felizes. Consegues esperar até sexta-feira? Apenas o tempo é livre; nós, não.

 

Vazio
Vazio é o que se chama ao espaço que existe entre nós. Aquele que podemos percorrer juntos. Agora.