Opinião

De repente

11 mar 2021 15:05

Talvez o sentido seja sempre algo momentâneo e fugaz. Pede que lhe tragam o jantar ao quarto e aguarda.

Regressa ao hotel que a acolhe durante aquela semana; enquanto sobe ao oitavo andar tem tempo para pensar se teria rido alguma vez durante o dia.

Não, não tinha.

Um dia em que não ri será um dia perdido?

Toma um banho demorado enquanto se esforça para não pensar nos risos perdidos. Sente que o corpo apazigua, e isso já é um alívio.

Veste-se como se fosse sair; apesar de saber que não irá sair.

Pensa: quantas coisas são feitas porque, no momento, fazem sentido, mas depois de concretizadas parecem absurdas?

Todas?

Talvez o sentido seja sempre algo momentâneo e fugaz.

Pede que lhe tragam o jantar ao quarto e aguarda.

Quando chega, a funcionária olha-a com interesse, e isso agrada-lhe; conversam durante alguns instantes sobre a qualidade das refeições do hotel; trocam sorrisos, mas não consegue rir.

Janta sozinha; distrai-se com o quadro que está na parede, uma pintura hiperrealista de uma mulher sentada na beira da cama naquele próprio quarto; pergunta-se se em todos os quartos do hotel estará uma cópia daquela pintura ou um outro quadro, uma outra personagem.

Por um breve instante, sente a tentação de ligar para a recepção e perguntar. Mas continua a mastigar a sua comida, logo esquecida dessa tentação. É raro ceder às tentações que sente.

O que seria de si, se as seguisse sempre?

Olha a mulher do quadro e imagina que será modelo profissional; depois imagina que será namorada do pintor; depois imagina que é a própria pintora. E depois engasga-se.

Mastiga distraidamente um pedaço de queijo, e de repente engasga-se.

Sente uma aflição súbita, tosse com violência, suspende a respiração, dá pancadas desesperadas nas suas próprias costas, caminha ao acaso pelo quarto, bate na cama e sente uma dor abrupta no pé, continua a sufocar, cambaleia sem objectivo nem sentido. E há um instante em que pensa: posso morrer.

Continua a dar pancadas desajeitadas nas próprias costas.

Pensa estupidamente: se vou morrer agora, ainda bem que vesti roupa de jeito.

Quase ri, mas o riso sai misturado com tosse e desespero.

Riso desesperado: porque pode ser o último. Mas então tudo volta ao normal, consegue retomar a respiração; continua a tossir durante longo tempo, mas de uma forma cada vez menos sôfrega.

Já não dá pancadas em si própria, sente-se invadir por uma onda de alívio que talvez seja a sensação mais avassaladora que já sentiu. Senta-se na cama, tenta controlar a tosse e a respiração.

Chora, e o choro traz consigo soluços incontroláveis. É a forma que o corpo descobre para se recompor.

Para acalmar.

Para pedir desculpa ao espírito. Ou talvez aquele susto tenha sido a estratégia que o corpo encontrou para a alertar: não passes o tempo a pensar nos risos que ficam por dar.

Deixa-se estar imóvel, a tentar serenar.

A pensar que devia sair do quarto e procurar companhia. Mas vai-se deixando estar, quieta.

À espera que o sono chegue, e traga o esquecimento. Adormece; para acordar logo depois, incomodada com a dor que sente no pé. Há sempre uma dor que faz esquecer as outras?