Opinião
Damião de Góis no Mosteiro da Batalha
Nesse Portugal em perigo, uma das maiores figuras do Humanismo do seu tempo estiola num convento dominicano, cheio de sarna
O Mosteiro da Batalha impressiona-nos pela sua arquitectura e arte.
Esquecemos, por vezes, que foi convento e que nos seus espaços, agora amplamente abertos à curiosidade dos visitantes, foram poucos os que até 1834 puderam entrar portas adentro.
Convento dominicano, de clausura estrita após 1550, tem algumas histórias para revelar e uma das mais esquecidas é o que o liga ao humanista Damião de Góis.
Damião de Góis, logo aos 20 anos colocado como secretário da Feitoria Portuguesa de Antuérpia, será hóspede de Erasmo de Roterdão, e privará com humanistas como Glareanus, Veit Amerbach, Albrecht Dürer, Sebastian Münster, com os cardeais Pietro Bembo e Jacopo Sadoleto e o historiador e geógrafo Giovàn Battista Ramùsio, conhecerá Inácio de Loyola, Martinho Lutero e Melanchton.
Frequentará a Universidade de Pádua e a Universidade de Lovaina, casará com Johanna van Hargen, de família abastada, filha de um conselheiro flamengo da corte de Carlos V. Percorrerá toda a Europa em missões diplomáticas e de estudo e nessas suas viagens privará com Martinho Lutero e Melanchthon.
Um “mau” currículo que pesará no fim da sua vida.
Regressa a Portugal, tendo sido nomeado em 1548 guarda-mor interino da Torre do Tombo e encarregue pelo Cardeal-Infante D. Henrique de escrever a crónica oficial do reinado de D. Manuel I de Portugal.
Perdendo aos poucos a proteção do jovem rei Sebastião e tornado mal quisto por algumas das poderosas famílias nobres que não se viram bem retratadas nas suas crónicas, Damião de Góis é preso às ordens do Tribunal do Santo Ofício, sujeito a processo e em Outubro de 1572 condenado a cárcere perpétuo como hereje, luterano, pertinaz e negativo, sendo transferido para o Mosteiro da Batalha.
Pouco sabemos desta estadia num convento dominicano, onde funcionavam os Estudos Gerais e, portanto, reduto teológico da ortodoxia católica.
E a sua prisão num convento onde alguns dos seus mestres e priores foram juízes do Tribunal da “Santa” Inquisição não terá sido por acaso.
De Damião de Góis sabemos que os bens lhe tinham sido confiscados (o que equivalia à sua ruína e à da sua família) e que, com 69 anos de idade, prisioneiro, sente-se muito velho e doente.
Está cheio de feridas e sarna por todo o corpo - que me falta pouco para me julgarem leproso e quase não tenho já forças para me suster sobre as pernas. Nessa clausura imposta, suplica: peço-lhes que me mandem emprestar um livro em latim para ler, qual lhes parecer, porque estou apodrecendo de ociosidade e com o ler se me passam muitos pensamentos.
Este ano de 1572 pode ser uma metáfora de uma nação retrógrada e em perigo: o jovem rei Sebastião já sonha com a desgraçada aventura de África; a divisão religiosa na Europa entre protestantes e católicos é irreversível, dramática e violenta; e na Península a Inquisição procura, persegue e condena heréticos e cristãos-novos.
Nesse Portugal em perigo, uma das maiores figuras do Humanismo do seu tempo estiola num convento dominicano, cheio de sarna. Morrerá pouco depois, em Alenquer, em circunstâncias ainda hoje por apurar.