Opinião
Crónica da sala de espera
Um fim que se recusa
Há imagens que alteram a morfologia da retina.
O canteiro murcho na curva da entrada do hospital.
O bar anónimo que serve pastelaria obesa.
O linóleo gasto da sala de espera.
A senha com o número alto que promete demora.
A gorjeta muda e o pudor.
O saco de plástico desbotado que carrega a história do nódulo. A espera que não cede à gorjeta.
O protocolo cifrado assinalado na etiqueta do pulso.
A prioridade do estado de saúde definida por cores.
O sinal de chamada. O abandono.
A saúde que aguarda. A bata desinfectada e curta.
O cabelo simulado desviado da linha simétrica da testa. A veia magoada que sobra da manga que não chega para esconder o braço marcado pelos soros.
O porte aristocrático com que passa no corredor de bata curta e cabelo oblíquo.
O momento em que regressa para entregar a medalha da fé a quem espera. A superstição.
O olhar com que silencia quem a aguarda. O rosto de quem espera que se enterra cego no livro.
A demora. O porte delicado com que regressa vestida e endireita discretamente o cabelo.
A pergunta que esbarra na pressa do médico que passa no corredor e que não tem respostas.
A etiqueta que permanece no pulso. O táxi de estofos de napa. O cheiro a desodorizante barato do automóvel. O discurso cúmplice do taxista veterano da saída do hospital que quer distrair.
A música tola.
O embaraço do saco desbotado com o histórico do nódulo, que pesa.
A etiqueta do pulso que custa a rebentar.
O taxista que não sabe o caminho.
A saúde míope. A doença opaca que confunde o futuro.
O remédio cruel cujos efeitos perduram. O conforto que não consola.
O amor que não chega. O riso que não oculta.
Um ateu a relembrar a medalha da fé que ainda não regressou ao peito e na qual depositam ambos uma esperança avulsa.
Uma ideia de prece que acelere o sono químico da noite e que inicie uma qualquer espécie de esquecimento.
Um fim que se recusa.