Opinião

Cinema e TV | Isto é uma coisa a ver: Império da Luz

28 abr 2023 15:48

É, essencialmente, um filme sobre a beleza. Não tanto a beleza estética do próprio filme (que teve uma nomeação para os Óscares pela fotografia), mas a beleza que se pode encontrar na banalidade do quotidiano e no desconforto da existência

Empire of Light (Império da Luz) é o mais recente filme de Sam Mendes, cuja estreia em grande ecrã esteve marcada para fevereiro, mas que acabou por entrar diretamente para o Disney+ sem passar pelas salas portuguesas, facto que não deixa de ser irónico dado tratar-se de um tributo ao cinema enquanto espaço físico em que a realidade se mistura com a ilusão projetada num feixe de luz, um ponto de fuga operado por aqueles que trabalham nos bastidores para que a magia aconteça.

A ação do filme decorre quase inteiramente no edifício do Empire Cinema, uma construção majestosa e decadente situada junto ao mar numa pequena cidade costeira inglesa. As personagens são os funcionários da sala de cinema, que projetam os filmes, cobram bilhetes, servem pipocas e apanham o lixo, liderados pela extraordinária Olivia Colman no papel de Hilary Small, uma mulher de meia idade emocionalmente instável.

O contexto histórico quase podia ser irrelevante para a narrativa, uma vez que a estética do filme permitiria grosseiramente situá-lo em qualquer momento dos últimos 40 anos, mas trata-se do início dos anos 1980, anos da recessão económica britânica, do governo Thatcher e da ascensão dos movimentos skinhead. Anos de racismo e intolerância que, no filme, são sofridos por Stephen Murray (interpretado por Micheal Ward), o jovem negro que é contratado para trabalhar no Empire Cinema.

Mas não é só o racismo que gera o sentimento de mal estar que perpassa o filme. Também a solidão, o envelhecimento, a exploração sexual e emocional e o equilíbrio mental femininos são centrais na história de Sam Mendes. Hilary (que nunca vira um filme, apesar de trabalhar numa sala de cinema) concentra todas estas caraterísticas, como se fossem partes do mesmo todo, sem correlação ou causalidade óbvia. Mas essas relações são subtilmente insinuadas, como acontece na cena da praia em que Hilary, que havia sido internada por problemas mentais, destrói o castelo de areia quando Stephen lhe pergunta pela sua vida amorosa passada, ou, de forma menos subtil, quando fala acerca da mãe ou quando acede em ter sexo com o patrão (Colin Firth) sempre que ele a chama ao seu escritório, como se isso fizesse parte das suas funções laborais.

No entanto, apesar da dor e melancolia dos personagens, tal como acontecera com American Beauty, Empire of Light é, essencialmente, um filme sobre a beleza. Não tanto a beleza estética do próprio filme (que teve uma nomeação para os Óscares pela fotografia), mas a beleza que se pode encontrar na banalidade do quotidiano e no desconforto da existência. A beleza possível das coisas estragadas, envelhecidas, decadentes, magoadas, gastas. Uma beleza sem artifícios que permite um amor mais puro, porque não preso a convenções ou estereótipos.

Um amor que talvez apenas o cinema permita, porque os filmes, como diz o projecionista do Empire Cinema (Toby Jones), são apenas fotogramas estáticos com luz pelo meio, projetados a uma velocidade de 24 por segundo. É a falha do nervo ótico que nos permite ignorar a escuridão que existe entre os fotogramas e nos dá a ilusão de movimento, de que cada instante será sucedido a uma velocidade vertiginosa pelo instante seguinte, e de que a vida acontece numa sucessão contínua de momentos fixos. E, como Empire of Light nos mostra, no cinema, como na vida, apenas a suspensão da descrença nos permite acreditar na magia da luz. Ainda que isso dure apenas o tempo de um filme.