Opinião

Caminito

16 jan 2025 16:28

O importante não era o que devia ter acontecido, mas o que me tinha acontecido a mim dessa viagem

Eu precisava de fechar a capa de um livro que tinha chegado ao fim. Fernando Pessoa disse que era bom ter um livro para ler e não o ler. Mas este eu tinha-o lido ao pormenor. Eu vivi a história que aquele livro encerra e agora a capa para o cobrir está a ser-me demasiado pesada. Há metáforas que se intrometem na realidade, pois desde que esse livro terminou nunca mais tive vontade de ler.

Eu que sempre fui viciado em livros. Três meses sem ler para mim é preocupante. Ponderei recorrer à ajuda de um psicólogo. Afinal não foi preciso. A ajuda veio-me da visita ao Caminito del Rey, no fim-de-semana passado.

Trata-se de um passadiço cravado nas paredes de desfiladeiros muito altos. Embarquei no autocarro, no grupo da Alexandra que posta no Facebook fotografias com alegria a esvoaçar.

Eu queria beber dessa alegria de grupo, no autocarro e fora dele. Eu queria a vivência do caminho e não apenas a aventura do destino. Sofro de vertigens, nem pensar caminhar no alto daqueles passadiços.

No dia da visita, todos ficaram incrédulos quando eu disse que não ia. A guia Alexandra também não foi porque andava adoentada. À frente do hotel acenámos aos aventureiros e quando o autocarro arrancou fomos descansar: ela para o quarto, eu para a piscina. Senti-me bem, numa espreguiçadeira à sombra de uma árvore.

Tirei da mochila o livro que sempre carrego e comecei a ler. Com prazer. Senti uma alegria especial a invadir-me. Eu estava novamente a ler, a sentir o gosto da beleza das palavras bem escritas. Senti a euforia de alguém que paralisou das pernas e que de repente começou a andar. Saboreei lentamente dois contos do Malamud. E senti-me curado!

Quando a Alexandra desceu para um café partilhei com ela o que me tinha acontecido e ela entendeu o motivo da minha alegria. Fiquei-lhe grato por isso. E por ter sorrido em silêncio quando tentei imitar o poeta: “Sabes, Alexandra, que bom foi ter chegado ao Caminito, e não o fazer…”.

Já era muito tarde quando o grupo chegou. Vinham felizes. Todos a lamentarem-me, eu nem sabia o que tinha perdido. E eu a fingir pena por gratidão, mas cheio de alegria, porque bem por dentro de mim eu tinha feito o meu caminito.

Quando acabou a viagem e cheguei a casa, disse a mim próprio que tinha sido um belo fim-de-semana. Porque o importante para mim não era o que devia ter acontecido, nem mesmo o que aconteceu, mas o que me tinha acontecido a mim dessa viagem.