Opinião
Aos meus (lembrando a Ana)
Falta a tudo isso o movimento da construção, o divagar do sonho, a excitação da viagem. O entrelaçar das pequenas coisas que nos acontecem e que pensamos não terem importância, mas têm
Já noto o efeito do tempo a aceitar lentamente a ausência inevitável. Pai, mãe, sogros, amigos, já tantos foram! E também ela, que não era para ir. A dor, claro que persiste. Esta dor não resulta apenas do ela não estar. É o nós não estarmos, ela e eu.
Mas se vou aceitando, se até consigo viver no espaço que sempre foi dos dois e usar as coisas que partilhávamos, de onde me surgem estes espinhos que me fazem sofrer? Talvez não sejam espinhos, mas nós.
Olho para esta peça de crochet que ela não chegou a acabar. Posso dobrá-la e arrumá-la numa gaveta e sei que lentamente a vou esquecer. Mas todas as noites quando me sentar no sofá vou continuar a sentir a falta dela ali ao lado a construir a peça em silêncio, nó após nó. O que me dói não é tanto o desaparecimento da peça de crochet, mas a interrupção abrupta da sua construção.
Talvez o importante não seja a peça, mas os nós que fazem essa peça possível. Deve ser isso que me dói, lá no fundo da alma. Mais do que a ausência física de alguém especial, dói-me a falta dos nós que nos uniam para construirmos a viagem da vida a dois. Uma viagem que foi assim colorida como esta peça.
Claro que subsiste a recordação, eu sei (“Agarra-te aos bons momentos que passaram juntos”, dizem-me). Isso vai-me escorando, isso e o conforto que recebo de tanta gente. Tivemos uma vida atafulhada de fotos. Posso sempre olhar para as fotos e para a peça de crochet e imaginá-la a ela por trás.
Mas falta a tudo isso o movimento da construção, o divagar do sonho, a excitação da viagem. O entrelaçar das pequenas coisas que nos acontecem e que pensamos não terem importância, mas têm.
Vou continuar em frente. Continuar como a Ana desejaria que eu continuasse. Vou fazer um esforço por criar nós com os outros, os que me são mais chegados: filhos, netos, amigos. A minha vida já não será uma peça de crochet como esta, eu sei. Mas com os nós que for criando hei-de construir pedaços felizes.
E ligando esses pedaços, vou continuando a viagem. Diferente, mas também colorida.