Opinião
Aproveitar a luz que o apagão fez
Dos adolescentes, ouvi o espanto pelo bem-estar que sentiram numa experiência de vida sem redes sociais e mensagens
Nessa extraordinária segunda-feira, andava eu a cirandar pela casa em volta de pequenas tarefas quando ouvi a electricidade ser interrompida com o barulho surdo que fazem os contadores ao desligar, e o súbito silenciar do canal de notícias que ia ouvindo à distância. Numa casa com fogão a gás e substancial reserva de água armazenada para o que der e vier, não vá o diabo tecê-las quando se vive no campo e as interrupções no fornecimento não são invulgares, o dia recomeçou no jardim, de forma idêntica ao de qualquer outro belo dia de sol: alguma leitura e conversa. Esta sobre o apagão, evidentemente, comentando as invenções nitidamente alarmistas veiculadas nas redes sociais, e ouvindo a rádio - mas apenas nas primeiras horas - em busca de informação credível.
Resolvidas as questões práticas, que têm sempre solução, e terminado o almoço, começou uma das tardes mais agradavelmente longas de que tenho memória. Foi o mondar das ervas daninhas, o investigar do crescimento das flores, o verificar dos pequenos frutos que em algumas árvores já despontam, o observar dos estreitos caminhos que a água continua a lavrar nos declives, o conversar, e o ler, por entre pausas de silêncio, de contemplação e de pensamento.
As horas passaram lentíssimas e cheias, até ao aparecer da primeira estrela no alto das nuvens brancas ainda brilhantes de sol, depois os pardais a debicar o jantar na relva, um pouco mais tarde o som dos grilos e, por fim, a chegada trémula dos pirilampos; tudo o que, há muito, não via. Ali se continuou a conversa, se jantou, e se fez um pouco de serão para, por fim, já na cama e à luz da vela, uma última leitura antes de dormir, como num livro de Júlio Dinis; que a minha electricidade só chegou quando já era o dia seguinte.
Maravilhosa segunda-feira sem a dependência de notícias, entrevistas, séries, redes sociais e mensagens! Delicioso dia sem poder trabalhar num portátil velhinho que precisa de estar ligado à corrente! Extraordinárias horas desdobradas em perguntar, contar, responder e ouvir! Perfeitos momentos, mergulhada num livro e nos pensamentos que dali emergem!
Nos dias seguintes perguntei a todos os meus alunos pequenos como tinham vivido o apagão, e logo nasceram sorrisos que contaram brincadeiras na rua com os vizinhos, passeios na praia, jogos de tabuleiro, banhos “de copinho” na varanda, construção de esconderijos na sala, leitura de histórias, ver estrelas à janela, ou cantar, com pai, mãe ou avós.
Dos adolescentes, ouvi o espanto pelo bem-estar que sentiram numa experiência de vida sem redes sociais e mensagens, a permitir descobrir uma outra forma de estar, que me disseram ser melhor.
Dos adultos, apesar do ónus da resolução de problemas, a frase que resume o que ouvi foi ter sido “uma festa”. O sistema de comunicação/informação que hoje temos é útil, veio para ficar, e tolo seria apregoar as delícias de uma vida sem ele.
Mas, se todos sentem a sobrecarga, a perda de horas diárias, e o afastamento dos outros que o seu uso exagerado provoca, é certamente hora de mudar de atitude e passarmos a viver melhor.