Opinião
A apologia do alfarrabista
Ainda que situado num outro tempo, a leitura deste pequeno texto não deixa de manter alguma actualidade
Desde que existe um público literário (…) o leitor, colocado diante de uma grande variedade de escritores e de obras, reage de duas maneiras: por um gosto e por uma opinião.
Instalado diante de um texto, vai produzir-se nele o mesmo clique interior que sentimos (..) quando encontramos alguém: "ama" ou "não ama”. (…)
Alguém que tenha lido um livro desta maneira fica preso a ele por um laço forte (…). É este sentimento que transforma o leitor em prosélito fanático que não descansa (…) enquanto não fizer partilhar por outros a sua singular emoção.
Há livros que nos queimam as mãos, que semeamos como por encanto, que compramos meia dúzia de vezes sempre contentes por nunca os vermos voltar.
Cinquenta leitores deste quilate, fazendo incessantemente vibrar quem os rodeia, são outros tantos portadores de vírus filtrantes que chegam para contaminar um vasto público; (…) a glória de Mallarmé, como se sabe, não teve outro veículo: cinquenta leitores que se deixariam morrer por ele.»
A literatura no estômago, Julien Gracq, Assírio e Alvim, 1987.
A literatura no estômago é um pequeno livro da autoria de um escritor francês nascido no início do século XX que faz um retrato mordaz do meio literário de meados do século, no qual repudia o vedetismo, a fragilidade crítica dos jornais e das universidades e o parasitismo das organizações culturais francesas.
Tendo recusado o Prémio Goncourt que lhe foi atribuído em 1951 pela sua obra-prima A Costa das Sirtes, Gracq é impiedoso na distinção que faz entre literatos e literatura; entre os que lêem, e os que falam e mostram.
Ainda que situado num outro tempo, a leitura deste pequeno texto não deixa de manter alguma actualidade e a passagem com que abro esta crónica é para mim uma das mais brilhantes definições desse frenesim que nos aproxima de um livro e que nos faz «dar a vida» por ele.
Venho de um tempo e de um espaço de livreiros-leitores, e, a par dos meus interesses profissionais que me conduzem de forma mais ou menos óbvia a certos livros, chego ainda a muitos outros através desse pequeno grupo de «prosélitos fanáticos» que não descansam enquanto não me contaminam com a emoção com que os leram.
Além dos amigos e de um outro texto, é nesse território sui-generis dos alfarrabistas (e de uma ou outra livraria) que é, ainda hoje, possível esse encontro de dois fios eléctricos com que Gracq descreve a transmissão do sentimento de adesão a um livro.
Não só porque é neles que é possível encontrar edições há muito expulsas do circuito das grandes lojas de livros, mas sobretudo porque, não raras vezes, são eles os leitores que nos antecedem nas leituras e a quem confiamos a remota esperança que nos consigam encontrar aquele livro cuja leitura nos é vital.
O Sobrinho de Wittgenstein – uma amizade, talvez um dos livros em que o escritor austríaco Thomas Bernhard (1931-1989) revela a sua faceta mais sensível e humana, foi um desses casos «vitais» que há muito procurava ler.
Inexplicavelmente esgotado, o título pairava nas conversas que fui mantendo com alguns leitores da obra de Bernhard.
Encontrei-o inesperadamente em Março deste ano num alfarrabista. Bastou uma noite para o ler quase febrilmente e sem interrupções.
Nele Thomas Bernhard relata, num texto torrencial, com traços autobiográficos, sem um único parágrafo, a relação de amizade singular que manteve até à sua morte com Paul Wittgenstein, sobrinho do filósofo Ludwig Wittgenstein.
Um monólogo avassalador e desconcertante sobre uma amizade radicada na paixão pela música, na inteligência, na observação crítica e mordaz da sociedade vienense, nas apreciações filosóficas que ambos teciam acerca de assuntos como a fragilidade, a doença ou o fim.
Uma amizade atravessada no limite pela perda final de Paul para a morte, já em manifesta decadência física, em que Bernhard deixa de o visitar expondo de forma visceralmente honesta a cobardia e a vergonha de se ter retirado dos seus dias finais.
O espaço de uma crónica é diminuto para escrever sobre este livro particular de Thomas Bernhard. Mas é um daqueles casos capazes de fazer transformar mais “um leitor em prosélito fanático que não descansa enquanto não fizer partilhar por outros a sua singular emoção.”