Opinião
Uma estranha corrida
Assim que nascem mostramos às nossas crianças como a vida se faz e desde logo o “ter” surge como suporte de felicidade, assumindo o estatuto de absoluto valor.
Às vezes ponho-me a observar a frenética movimentação das pessoas que passam por mim. A pé ou de carro, todas parecem ter tarefas inadiáveis a fazer no momento imediatamente a seguir. Todas parecem ter um foco preciso, um objetivo bem definido, ambos vitais para as suas vidas naquele dia. Correndo, sempre a correr, entram e saem das lojas e repartições, peões impacientes lançam-se para as passadeiras sem as devidas cautelas, quando surge o amarelo, condutores aceleram para não ficarem sujeitos à paragem que lhes é imposta pelo vermelho!
E eu pergunto-me, dia após dia, sempre nesta agitação, para onde correm estas pessoas? Para assim correrem o que deixaram para trás, do que é que se libertaram? Dos filhos, certamente! Depois das aulas, na escola ou não, eles seguirão para um qualquer espaço que os guarde. Dos velhotes da família também! Esses estarão num qualquer depósito criado para os receber, mas jamais no seu lar! Oh, que coisa mais estranha! Afinal, estas pessoas, todas elas, correm, que nem doidas, para aquilo que aceitaram como imprescindível à concretização da sua correria: correm para ficar num depósito, muito técnico mas desumanizado, onde serão acolhidas quando, independentemente da idade ou estatuto social, deixarem de ser, pela idade, ou por uma qualquer fatalidade, autonomamente produtivas para as famílias e para os mercados. Se não vejamos. Assim que nascem mostramos às nossas crianças como a vida se faz e desde logo o “ter” surge como suporte de felicidade, assumindo o estatuto de absoluto valor.
*Professora
Texto escrito de acordo com a nova ortografia