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Paulo Moreiras: “Espero que este prémio venha a despertar o interesse de alguma editora em Espanha. Isso sim, seria uma aventura interessante”
Distinguido pelo clube PEN português com o romance A Vida Airada de Dom Perdigote

Depois de Carlos André merecer o Prémio D. Diniz da Fundação da Casa de Mateus pela tradução de Arte de Amar, de Ovídio, a primeira tradução portuguesa feita directamente do latim, e publicada em edição bilingue pela Quetzal, o olhar do país literário volta a debruçar-se sobre o distrito de Leiria, onde o género picaresco continua a resistir através do talento de Paulo Moreiras, que ontem venceu o prémio PEN português de narrativa, no valor de 5.000 euros, com A Vida Airada de Dom Perdigote.
Será este o tipo de acontecimento afortunado que pode servir de gatilho ou ponto de viragem numa história? “O romance termina com Dom Perdigote a invocar o auxílio da boa fortuna. Porém, até este momento, não sabemos o que lhe aconteceu ou irá suceder”, comenta Paulo Moreiras, numa resposta enviada ao JORNAL DE LEIRIA. “Não obstante, quanto ao autor, esta volta do destino vem trazer a alegria e o entusiasmo suficientes para ser magnânimo acerca do porvir de Tanganho Perdigão Fogaça”.
O escritor residente no concelho de Pombal – que sucede a Lídia Jorge, distinguida em 2023 na mesma categoria, por Misericórdia – sonha que os efeitos do prémio PEN (apoiado pela Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas) possam chegar ao outro lado da fronteira.
O enredo, que é como que uma declaração de amor à cultura e à literatura do país vizinho, tem como ponto de partida o ano de 1605 (data de publicação de Dom Quixote) e a cidade de Valladolid, onde então residia Miguel de Cervantes.
“A beleza dos livros e as errâncias do seu destino estão sempre na mãos dos leitores. Eles ditam o seu olvido ou a sua vivência. Espero que este prémio o venha resgatar do destino a que estava votado, e que venha a despertar o interesse de alguma editora em Espanha. Isso sim, seria uma aventura interessante”, antecipa Paulo Moreiras, sem falsa modéstia. “Quando terminei este romance sabia bem o que tinha em mãos. Tinha acabado de escrever um romance extraordinário e, acima de tudo, a minha escrita evoluíra, tornara-se mais madura. Este prémio vem validar a minha intuição e, sem dúvida, contribuir para um novo olhar para o romance histórico e, em particular, literatura picaresca”.
O júri (Sérgio Guimarães de Sousa, Teresa Carvalho e Everton Machado) concorda e considera que esta é “uma obra de notável fôlego romanesco, que, além de reabilitar com virtuosismo o género picaresco e, mais latamente, o romance histórico, revela uma opulência lexical invulgar e um investimento não menos invulgar na expressividade literária”.
Entre os finalistas, estavam Hélia Correia, H. G. Cancela, Djaimilia Pereira de Almeida e Clara Macedo Cabral. Na categoria de poesia, venceu o livro Nocturama, de Luís Quintais.
Os elogios que nos últimos anos cobrem o trabalho de Paulo Moreiras (de Ricardo Araújo Pereira a Miguel Real) atingem agora um novo patamar de reconhecimento.
Editado com a chancela da Casa das Letras, A Vida Airada de Dom Perdigote é o quarto romance do escritor natural de Moçambique (1969), que anteriormente, entre outras obras, publicou A Demanda de Dom Fuas Bragatela (2002), Os Dias de Saturno (2009) e O Ouro dos Corcundas (2011).
“Por ocasião do baptizado do filho varão, Felipe III de Espanha e II de Portugal promove festejos imperdíveis na cidade de Valladolid, sede da Corte e capital do império”, lê-se na sinopse. “E, se para aquele umbigo do mundo – onde desaguam todos os vícios, velhacarias e vilanias – concorrem nobres e ladrões, damas e rameiras, será mais do que certo que, depois de um périplo por Badajoz, Sevilha, Trujillo ou Toledo, siga também para lá Tanganho Perdigão Fogaça, conhecido por Dom Perdigote, a fim de cumprir o seu destino”.
“Este romance é uma espécie de divertimento erudito, de uma declaração de amor à cultura e à literatura de Espanha, cheio de referências não só literárias mas também geográficas, com um manancial de palavras e expressões populares de origem espanhola”, explicava o autor ao JORNAL DE LEIRIA, em 2023, antes da primeira apresentação pública do livro, no Correntes d'Escritas. “Há vinte anos que leio e estudo a novela picaresca e quando decidi escrever este romance quis prestar homenagem a este género tão ibérico e tão identitário”.
Conforme se avisa na sinopse, nem tudo se apresenta de feição a Dom Perdigote, espadachim nascido no ano em que morre Camões. Entre as muitas peripécias vividas, encontra o amor da sua vida e conhece o pintor El Greco, o escritor Quevedo e até Cervantes. Porém, será envolvido na tentativa de assassinar um dramaturgo que integra a embaixada inglesa, enviada para ratificar a paz entre as duas nações.
“Uma personagem que me deu um enorme prazer a criar, com uma vida não só bastante airada, como cheia de peripécias e atribulações, em busca do seu destino, tal como eu”, dizia Paulo Moreiras em 2023. “Houve uma altura em que fiquei desencantado com a literatura e foi precisamente com a leitura do Dom Quixote e do Gusmão de Alfarache na sua versão em espanhol que decidi regressar ao romance. Pela primeira vez escrevi um romance no silêncio e isso transformou toda a minha imaginação e forma de escrever. Este é um romance mais maduro, com outra profundidade, que a vida também me ajudou a compreender. Isto é aquilo que sou”.
Os Prémios PEN são atribuídos alternadamente; este ano foram abrangidas as categorias de poesia e narrativa, no próximo ano serão distinguidas obras nas de ensaio e tradução.
Paulo Moreiras começou na banda desenhada e navegou pela poesia. O Caminho do Burro, de 2021, reuniu os seus melhores contos. Também escreveu sobre gastronomia, com destaque para Elogio da Ginja (2006) e Pão & Vinho – Mil e uma Histórias de Comer e Beber (2014).