Economia
O que é a blockchain? Uma história com um leiriense, pizzas, uma festa e cadernos mágicos
Tecnologia funciona como “uma rede”, “um livro-razão que está distribuído por uma série de nós, que está na posse de vários titulares”. Tem cinco pilares: a descentralização, a imutabilidade, a transparência, a segurança e o consenso
Tudo começou por teimosia.
Alaszlo Hanyecz, um programador residente no estado norte-americano da Flórida, queria comprar duas pizzas grandes com recurso a bitcoins.
Só porque sim.
Não tinha fome, nem grandes exigências quanto aos ingredientes: simplesmente achou que “seria interessante” fazer uma compra com a mais famosa aplicação da tecnologia blockchain do mundo — cujo código informático ele próprio chegou a ajudar a nascer.
Como, de resto, gostava de ter sobras de pizza no frigorífico para ir petiscando, no dia 18 de Maio de 2010, fez uma publicação no fórum Bitcointalk que viria a mudar o mundo: oferecia 10 mil bitcoins, uma moeda virtual apresentada em 2008 por alguém sob o pseudónimo Satoshi Nakamoto, a quem lhe entregasse a encomenda à porta.
O desafio ficou a fermentar durante dias no fórum.
Ninguém acedia ao inusitado pedido de Alaszlo — ora porque, tal como lhe havia acontecido, nenhum dos restaurantes aceitava a criptomoeda; ora porque a distância geográfica aos outros utilizadores simplesmente não permitia sequer tentar.
As mensagens que Alaszlo deixou no fórum, e as respostas que foi recebendo nos dias seguintes, sobreviveram na internet até aos dias de hoje.
“Então, ninguém me quer comprar uma pizza? O montante em bitcoins que estou a oferecer é demasiado baixo?”, questionou três dias depois da publicação original.
Do outro lado do monitor, um jovem californiano de 19 anos assistia ao debate aberto por Alaszlo, pai de dois filhos e com 28 anos à época.
Naquele mundo digital, Jeremy Sturdivant chamava-se Jercos — e foi ele o único a levar o desafio de Alaszlo a bom porto.
A 22 de Maio, enquanto Leiria celebrava o dia da cidade, registou-se nos Estados Unidos a primeira transacção documentada com recurso a uma criptomoeda.
O jovem telefonou para uma pizzaria da cadeia Papa John’s em Jacksonville, pagou duas pizzas com cartão de débito e mandou-as entregar na morada indicada pelo programador norte-americano.
Em troca, recebeu as dez mil bitcoins de Alaszlo.
À época, aquela quantia valia 41 dólares, o equivalente a cerca de 31,5 euros.
Hoje, correspondem a quase 35 milhões de euros.
Por detrás da mais famosa moeda digital do mundo, está uma tecnologia que João Mota, director executivo da leiriense Void Software, quer tornar numa jóia da coroa para o investimento tecnológico em Portugal: a empresa de software lidera agora a "Agenda Mobilizadora Blockchain.PT", um consórcio de empresas de todo o País que pretende investir em produtos desenvolvidos com blockchain.
A agenda mobilizadora foi apresentada a 9 de Novembro nas instalações da Startup Leiria, promete criar mil novos postos de trabalho (alguns deles em áreas que ainda não existem e que derivam da evolução desta tecnologia) e terá até 31 de Dezembro de 2025 para colocar no mercado um cardápio de 26 produtos e dezenas de invenções científicas.
“O que nós queremos mesmo é capacitar Portugal de know-how especializado nesta área”, disse João Mota ao JORNAL DE LEIRIA: “é uma área de futuro, é a próxima era digital e nós podemos posicionar estrategicamente Portugal na linha da frente. Porque se tivermos aqui talento especializado, isso vai garantir que vamos continuar a tirar partido desta tecnologia no futuro”.
A blockchain trocada por miúdos
Mas que tecnologia é esta? A pergunta afigura-se como um déjà vu para o informático: “faz-me lembrar quando, em 1992 ou 1993, me perguntavam o que era a internet. Punha-me a dizer uma rede estruturada de dados, que usa o protocolo TCP/IP para enviar pacotes de informação, 32 bytes de capacidade… Ao fim de 30 segundos as pessoas já não estavam a ouvir e ficavam a pensar: ‘Isto não serve para nada, provavelmente’”, partilhou.
Trinta anos mais tarde, num mundo onde mais de 65% da população mundial utiliza a internet (grande parte sem perceber como realmente funciona), João Mota acredita que tudo o que a blockchain precisa para ser compreendida é “de casos práticos de uso”.
A bitcoin, acrescenta, foi um primeiro passo.
No grande dicionário da ciência da computação, blockchain é a mais conhecida das Distributed Ledger Technologies (DLT ou, em português, tecnologias de registo distribuído).
É “uma rede”, “um livro-razão que está distribuído por uma série de nós, que está na posse de vários titulares”.
Tem cinco pilares: a descentralização, a imutabilidade, a transparência, a segurança e o consenso.
“Pretende ser como a internet era no início, mas mais evoluída”, acrescenta João Mota: “cada pessoa fazia o seu servidor, metia o seu site online, fazia as suas aplicações e brincava à vontade”.
A Web2, uma segunda geração da internet, foi o berço de grandes agregadores de dados como a Google ou Facebook, que ofereceram espaço para monetizar a rede.
Agora assiste-se a uma nova era da internet: a Web3, em que os utilizadores procuram ter mais acesso e controlo sob os seus próprios dados.
A blockchain promete ser a chave para que isso aconteça. Vamos por partes.
Suponhamos que está na organização da festa anual na sua aldeia e que tem a responsabilidade de apontar todos os gastos com alimentos e todas as receitas obtidas pela venda de rifas num caderno — aquilo a que os contabilistas chamam livro-razão.
Tudo parece estar a correr bem até que, no momento de fazer contas, um dos organizadores coloca a sua honestidade em causa, acusando-o de ter declarado mais custos do que realmente houve e de não ter declarado algumas receitas.
Ora, a blockchain pode resolver este imbróglio: com ela, é como se todos os festeiros tivessem uma cópia desse caderno, actualizado magicamente sempre que uma nova transacção acontece.
Como todas as páginas de transacções antigas estão ligadas umas às outras por selos, toda a gente ficará a saber se eles forem violados.
Só há uma maneira de fazer alterações à magia que mantém todos os cadernos clonados uns em relação aos outros (mas nunca o seu conteúdo): se a maioria dos seus proprietários concordar com a mudança.
“Nenhum nó dessa rede consegue alterar sozinho o estado do sistema”, explica João Mota: “tudo o que eu acrescente na blockchain não pode ser apagado, porque está ligado ao bloco anterior, com uma criptografia. Isso significa que fica para sempre. Posso acrescentar mais informação, que eventualmente até pode revogar a informação anterior para quem está a ver, mas é sempre possível consultar a informação anterior. E ninguém consegue apagá-lo. Portanto, se for à blockchain da Bitcoin, consegue ver a primeira transação de sempre da Bitcoin. Ainda lá está guardada e é impossível apagá-la”.
O consenso por uma alteração a uma blockchain aconteceu precisamente com a Bitcoin, quando se percebeu que se estava a chegar ao limite da mineração daquela criptomoeda — o processo através do qual se registam novas unidades de uma moeda digital.
Os programadores por detrás do algoritmo da Bitcoin (ou seja, a magia que mantém os cadernos dos festeiros ligados entre si, na analogia que utilizámos) acordaram entre si alterar ligeiramente o código da moeda para permitir prolongar a mineração por mais algum tempo.
Agora, há dois tipos de Bitcoin em circulação: a original chama-se Bitcoin Cash e mantém o algoritmo primordial; e a segunda versão chama-se simplesmente Bitcoin.
Os dados “devolvidos ao povo”
O algoritmo da Bitcoin foi utilizada pela Void Software pela primeira vez em 2015.
A moeda valia, então, cerca de mil euros, recorda João Mota em entrevista, e era aproveitada pela empresa para registar de forma imutável alguma informação.
Seis anos mais tarde, depois de acumular conhecimento com outras DLT, a empresa foi convidada a integrar um consórcio de empresas com projectos baseados em tecnologia blockchain.
Quando o líder anterior se desinteressou pelo tema e abandonou funções, pondo o consórcio em xeque, a Void Software assumiu as rédeas do consórcio.
A primeira avaliação à agenda mobilizadora foi negativa e o plano foi chumbado — mas, depois de recorrer da decisão, a "Blockchain.PT" tornou-se numa das últimas agendas mobilizadoras do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) a ter luz verde para financiamento.
Hoje, reúne um total de 50 entidades — quase todas pequenas e médias empresas, mas também grandes instituições como a Sonae, o Instituto Politécnico de Leiria, a Cuatrecasas ou a Atlanticare.
Questionado sobre quais serão as grandes vantagens da blockchain na realidade empresarial leiriense, João Mota aponta para a necessidade de manter a segurança da informação.
Uma empresa de moldes na Marinha Grande, por exemplo, pode utilizar a blockchain como cofre para as informações mais sensíveis e preponderantes, protegendo-a em caso de ataque informático.
Quando uma fábrica produz um molde, por exemplo, a matéria-prima vem de outra empresa, a máquina terá sido comprada a algum fornecedor e o produto final será entregue a um consumidor.
É uma intrincada rede de negócios em que as soluções oferecidas pela Web2, com a deposição de informação na nuvem, não basta, argumenta o empresário: “já não faz sentido dizermos: ‘coloquem aqui no meu servidor a informação que eu prometo que não lhe mexo’. Para haver credibilidade, é necessário um sistema descentralizado, com consenso distribuído e com imutabilidade. Pode não ser prático utilizar como base de dados para toda a informação, mas pelo menos para a mais importante”.
Outra área emergente, aponta João Mota, é a da saúde.
“O objectivo é tirar a informação dos silos em que os dados dos utentes se encontram actualmente”, defende: “hoje em dia, uma pessoa é atendida num hospital, público ou privado, e o seu processo clínico está sob a custódia daquela entidade onde foi tratada. Se eu quiser ter o meu processo e levá-lo para outro lado, não é fácil”, exemplifica.
A blockchain destranca essa dificuldade e o poder sobre os próprios dados, na saúde, nos negócios ou em qualquer outra área “é devolvida ao povo”.
Em 2022, as estimativas apontavam para uma valorização do mercado global de blockchain entre sete mil milhões e 11 mil milhões de dólares (6,5 mil milhões a 10,1 mil milhões de euros) até 2032.
Quanto à agenda mobilizadora liderada pela leiriense Void Software, espera-se que ela atinja um valor acrescentado bruto de cerca de 215 milhões de euros.
Entre os produtos que estão em desenvolvimento — alguns dos quais já foram apresentados no mercado de trabalho sob a forma de protótipo — estão a criação de uma carteira digital portuguesa (TecMinho), de brincos equipados com sensores para monitorizar animais vivos (Sensefinity), de plataformas com inteligência artificial de apoio à decisão médica (BioGHP) e de plataformas que recompensam cidadãos ou empresas caso adoptem comportamentos sustentáveis, como a utilização de transportes públicos ou a separação do lixo (Toolpor).
