Sociedade
“Na protecção de crianças é preferível ter tribunais mais longe mas especializados”
Paulo Guerra, juiz desembargador, natural de Leiria, confessa que na jurisdição da família e menores “o mais complicado é tirar um filho a um pai ou a uma mãe por estes serem pobres".
“Escolhi ser um mago das regras também por elas [as crianças]”. Esta frase foi proferida por si, no ano passado, durante o encontro nacional de avaliação das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ). O que o levou a enveredar pela área da protecção de crianças?
Quando, em 1987, ingressei no Centro de Estudos Judiciários (CEJ) era dada pouca importância à jurisdição de família e menores. As magistraturas colocavam nessas áreas pessoas que estavam a dar problemas noutras jurisdições.
Entretanto, em 1996, estava no Porto e, por questões familiares, precisei de me mudar para Lisboa. Fui colocado no então Tribunal de Menores de Lisboa. Foi um murro no estômago. Foi aí que me vi confrontado com a realidade da infância em Portugal e da desprotecção das crianças, até em termos legais.
Com a entrada em vigor da Lei de Protecção de Criança e Jovens em Perigo e da Lei Tutelar Educativa, em 2001, deu-se um salto gigante nesta área. Todas as convenções internacionais dizem que as crianças têm de ser ouvidas o mais precocemente possível.
É o passar da ideia do 'cresce e aparece' para o 'aparece e cresce connosco'. De eles virem até nós, com as suas glórias, as suas misérias e as suas ansiedades, para tentarmos compreender o que é, de facto, a criança. Como juiz nunca tomo uma decisão contra os pais, mas sempre a favor da criança. Isto ajuda-me a dormir descansado. Nesta área, o mais complicado é tirar um filho a um pai ou a uma mãe por serem pobres.
O Estado deverá ser capaz de inverter essas situações de forma a que os tribunais não tenham de chegar a esse ponto. Mas, às vezes, falta tanta coisa que os pais se tornam impotentes para, fazerem seja o que for. Falou do “salto gigante” que a jurisdição da família e das crianças deu.
Temos hoje uma Justiça amiga das crianças?
Em termos de leis, claramente, que sim. Na prática, precisamos de mais meios. Por exemplo, só agora foi criada a primeira unidade para crianças com problemas de saúde mental. Imagine-se o que é ter uma criança dessas num centro de acolhimento ou educativo ou colocar um jovem com problemas comportamentais, já com alguma delinquência à mistura, num centro de acolhimento de crianças retiradas aos pais por negligência ou maus-tratos.
Na práxis judiciária vão sendo dados grandes passos, também mercê da especialização que está a ser feita. Temos hoje no País uma rede de juízes e magistrados do Ministério Público (MP) que só pensam nestas questões. Vejamos o que aí vem.
O que pensa das mudanças ao mapa judiciário anunciadas pelo Governo na semana passada?
Vai dar-se mais ênfase à proximidade da Justiça aos cidadãos do que à especialização. Na área da família e das crianças isso será um retrocesso civilizacional. A reabertura de tribunais pode fazer com que processos que estavam a ser julgados em tribunais de família passem para juízes sem essa especialização.
Nesta área, é preferível ter tribunais mais longe mas especializados. O que está em causa é a criança e o conhecimento que os profissionais que trabalham com ela devem ter. O juiz não pode passar o dia a tratar de uma acção de despejo ou de um crime para uma conferência de pais realizada ao final da tarde.
Acredito muito na especialização. Se na medicina temos pediatras para tomarem conta das crianças, por que é que não temos juízes e magistradas do MP pediatras? Um juiz que está nesta área tem a obrigação de, além de aceder à especialização dada pelo CEJ, se auto-formar, de ler livros de psicologia e de pediatria, por exemplo, que o ajudem a perceber os sinais emitidos pelas crianças.
Até porque esse sinais são, por vezes, enganadores.
Exacto. Recordo-me do caso de um menino que foi sinalizado na escola porque escrevia e desenhava tudo a preto. Levantaram-se suspeitas de abuso sexual. Afinal, não era nada disso. Ele tinha quatro irmãos, que lhe ficavam com os lápis e canetas de cor e só lhe deixavam o preto.
Podemos falar de uma Justiça amiga das crianças quando, assistimos ao arrastar de processos?
Os processos de crianças em perigo são todos urgentes. O que pode demorar é o delinear de um projecto de vida de uma criança. Isso não é fácil.
Podemos ter, no mesmo processo, psicólogos e outros técnicos a puxar cada um para seu lado, nomeadamente, no difícil momento de decidir se devemos fazer o corte com a família biológica e partir para um processo adoptivo.
Nessas alturas, as famílias vestem o melhor que têm, poeticamente falando. Tentam mostrar- se o melhor que podem, na tentativa de garantir a presença das crianças no seu agregado.
Por vezes, não por amor, mas porque socialmente é feio que lhes sejam retiradas as crianças. Tive, a experiência de ver pais que lutaram e lutaram pelos filhos, mas, quando lhes disse que o filho ia para a adopção, desistiram, como se esperassem que uma terceirapessoa lhes dissesse isso. Socialmente é mais fácil justificarem aos vizinhos ou aos amigos que foi o tribunal que lhes retirou a criança e a mandou para uma instituição.
Já lhe aconteceu um pai ou uma mãe dizerem-lhe que não têm condições para cuidar do filho?
Várias vezes, mas não em termos definitivos. Diziam que viviam melhor com a ideia de o filho ser institucionalizado, por algum tempo, até conseguirem refazer a sua vida. A legislação mais recente define que, até aos seis anos, as crianças devem ir para acolhimento familiar, como acontece nos EUA ou em Espanha. Mas, em Portugal não temos uma bolsa de famílias de acolhimento e só temos 50 casos de apadrinhamento civil.
Por que é que esse número é tão reduzido?
As pessoas não têm a cultura de tomar conta de uma criança sabendo que ela ainda tem laços com a família biológica. A ideia é: 'Se vem para mim, vem a tempo inteiro e para sempre'.
No apadrinhamento, os pais biológicos continuam presentes na vida da criança. Há visitas, cartas e comunicações das notas da escola, por exemplo. O abdicar de um filho em termos definitivos e por vontade expressa só acontece nos casos de consentimento prévio para a adopção.
O momento em que uma mãe diz que entrega o seu filho para a adopção é dos mais difíceis na vida de um juiz. Abdicar de um filho pode ser um acto de amor? Reconhecer que, de todo, se é incapaz de tomar conta de um filho ao ponto de cortar os laços biológicos, é um acto de muita grandeza.
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