Manuel Nunes: “Há 10 mil clubes no País e constatámos que ficámos entregues a nós próprios”

Calculo que estes últimos tempos tenham sido os mais difíceis que teve à frente da Associação de Futebol de Leiria.

Sim. Foi um momento muito difícil, conturbado, inesperado e inédito. De qualquer maneira, perante os dados que fomos tendo, rapidamente se tomou uma decisão. O mundo do Desporto deu o primeiro sinal perante a pandemia. Quando se começou a tomar a percepção do problema, o futebol interrompeu todas as actividades, a 9 de Março. Logo a seguir houve também a interrupção das actividades lectivas e só a 18 de Março o País é colocado em Estado de Emergência. Foi um bom sinal que demos.

Houve pânico?

Não, mas percebeu-se perfeitamente o problema e que era grave. Começou a ter-se notícia do que se estava a passar na China, depois em Itália e em Espanha, e das consequências que tinha. Lembro-me na Associação de termos tomado a decisão de interrupção das competições a uma segunda-feira e ao lado estava a decorrer uma sessão do curso de treinadores numa sala cheia, com cem pessoas. Tomámos a decisão de interrompê-la imediatamente. Parar a actividade é uma decisão estranha, esquisita, inesperada, contranatura, mas que teve de ser tomada, porque se percebeu que era a melhor estratégia para impedir que o problema se agravasse. E é bom que se perceba que as notícias naquela altura diziam que haveria centenas de mortes e milhares de pessoas infectadas nos dias seguintes, uma tragédia nacional. Foram decisões enérgicas, inesperadas e impensáveis. Nunca pensei ter de tomar, com os colegas da Direcção, uma deliberação dessas.

Foi unânime?

Sim. Nunca houve qualquer dúvida sobre a gravidade do momento e a necessidade de tomar decisões drásticas. O milagre português de que tanto se falou teve, de resto, muito que ver com a decisão pronta que se tomou no Desporto em Portugal, que se diz ter sido um foco de contágio em jogos da Liga dos Campeões, mas também na Educação. São 1,4 milhões de alunos e 250 mil professores e funcionários, um movimento de quase dois milhões de pessoas, um quinto da população do País que parou de imediato. Foi determinante esse confinamento. Toda a gente percebeu o problema, do analfabeto ao mais letrado. O truque é ir para casa, desinfectar bem as mãos e usar máscara. Havia que ter muito cuidado, até porque as condições dos estabelecimentos de saúde não eram os desejáveis nesta área. Nesse sentido, nós, na Associação de Futebol de Leiria, tivemos o cuidado de entregar dois monitores multiparâmetro com pressão invasiva aos centros hospitalares de Leiria e do Oeste. Era uma necessidade que tinham, fazia falta e era uma prioridade. Depois conseguimos um subsídio para o que gastámos, mas fizemo-lo com gosto, porque o cenário, naquela altura, não era famoso. Agora é que as pessoas já esqueceram.

Entendeu na altura que o dinheiro devia ser encaminhado para a Saúde.

Não tivemos dúvidas. A prioridade era ajudar, achámos por bem dar esses aparelhos em nome dos clubes do distrito do Leiria. Qualquer um de nós pode lá ir parar e que seja cada vez mais bem tratado e que possa voltar a jogar futebol rápido e bem.

Houve clubes que não gostaram que subidas e descidas de escalão tivessem ficado congeladas.

E com razão. É contrário à nossa actividade. Queríamos que os campeonatos chegassem ao fim, mas o problema era de tal ordem grave para a saúde pública que não havia outra decisão a tomar. Tive pena, mas isto é uma reacção em cadeia de actos administrativos. Nos escalões de formação, que teve as decisões mais drásticas, há clubes com 300 e 400 futebolistas em actividade. No mesmo balneário passam por tarde e noite três e quatro equipas, o que representa 120 atletas no mesmo sítio e num espaço temporal de cinco horas, sem qualquer alteração das condições de higiene, que é a estratégia para resolver este problema.

É precisamente a higiene o principal constrangimento para a próxima época?

É o problema, incluindo o transporte. Antes fazia-se em carrinhas, com sete miúdos e o director. Estou convencido de que o grande incómodo que os dirigentes vão ter de resolver é como vai ser feito o transporte de jogadores e como será feita a utilização das instalações para os treinos, porque um dos grandes problemas que temos no País é a falta de campos. Depois do boom da construção de instalações, as modalidades cresceram, e cresceram bem, e até variadas e de forma ecléctica, mas os campos e os pavilhões são os mesmos. Há 40 anos, um clube tradicional, em Leiria, tinha três equipas. Hoje, tem 20. E muitos destes clubes não crescem mais porque não têm instalações e até gostariam de crescer para o futebol feminino e não conseguem.

Sem espaço, como vai ser possível o regresso de todos?

Com muita imaginação dos dirigentes, até porque uma das regras prevalecentes é existir higiene entre as várias actividades praticadas. A solução, se calhar, a partir de infantis para baixo, inclusive, será eles virem equipados de casa e irem tomar banho a casa, apesar de no Inverno ser incomodativo. Mas não vejo outro solução. Dos seniores, o que ouço, que também é incómodo, é a realização de testes, mas cada um custa 63 euros...

Há ainda mais dúvidas do que certezas.

Os campeonatos seniores começam a partir de 22 de Agosto, os treinos a partir de 1 de Agosto e os escalões de formação iniciam os treinos a partir de 1 de Setembro. Estas datas são referências e tem-se trabalhado para isso. Mas como se joga andebol sem passar a bola entre os jogadores e sem haver contacto físico na defesa? Nas modalidades individuais é mais fácil e tem-se progredido, mas considero extremamente difícil, apesar de também ser importante arriscar com confiança, com método e com higiene dentro das regras conhecidas, sempre com muito controlo.

O presidente do Comité Olímpico de Portugal foi crítico relativamente à inacção governamental pra com os problemas que o Desporto atravessa decorrentes da pandemia. Concorda com a opinião de José Manuel Constantino?

O Comité Olímpico e não só, também o Comité Paralímpico e a Confederação do Desporto de Portugal. Também as cinco federações das modalidades de pavilhão - andebol, basquetebol, futsal, hóquei em patins e voleibol - têm-se reunido e manifestado desagrado por algumas indecisões e alguma lentidão em encontrar soluções. O que se passa é que desde o início do problema houve soluções para as PME, para s que tivessem dificuldades, permitiu-se o lay-off para evitar que o desemprego aumentasse. O objectivo foi que impedir que houvesse degradação do tecido empresarial, económico e financeiro para manter o País activo, robusto e sustentável. O que se foi notando é que houve apoios para o sector comercial e industrial, depois para a Cultura e para o Desporto ainda não. Há cerca de 10 mil clubes no País e constatámos que ficámos entregues a nós próprios. O apoio que os clubes têm tido é das autarquias locais, sejam câmaras municipais ou juntas de freguesia, que têm permitido que o movimento associativo desportivo se mantenha vivo. Da nossa parte, o que notamos das entidades governamentais - e não percebo bem porquê – é que parece que estão à espera que as coisas se resolvam por si, mas parece-nos difícil.

Agora é a altura das grandes despesas com as inscrições de equipas e jogadores.

Seria nesta altura, entre Maio e Agosto, que a maioria dos clubes assegurava a sobrevivência com a participação em feiras, mercados, tasquinhas e a realização de festas. Ganhavam milhares de euros que garantiam o funcionamento da época, designadamente as inscrições. Um dos grandes problemas das inscrições, o que a torna mais cara, é o seguro. Ora, a Direcção da AFL tomou a decisão de ajudar os clubes nas inscrições para a próxima época. Por um lado fizemos um empréstimo de 90 mil euros junto da FPF para ajudar a diminuir o valor das inscrições. Por outro, negociámos com a seguradora para que o estorno dos três meses sem actividades vá ser deduzido no valor do prémio a aplicar para o ano. Também tivemos a preocupação de escrever uma carta aos senhores presidentes das câmaras do distrito no sentido de pedir ajuda para apoiar os clubes naquilo que for possível. Eram medidas parecidas com estas que achámos que o Governo também devia tomar para a área do Desporto. Não era para o futebol, era para todas as 63 modalidades com estatuto de utilidade pública desportiva e fazer com que este movimento de 650 mil praticantes federados não se degradasse e pudesse, depois, regenerar.

Teme que 2020/21 arranque com menos clubes, equipas e jogadores?

Mais será difícil. A nossa esperança é que alguns clubes se reorganizem e contem com apoios, porque os patrocinadores vão ter dificuldades em ajudar com ajudavam até aqui. Faz-nos lembrar o que aconteceu com a troika. Houve um declínio muito grande, na ordem dos 10%, mas depois houve uma reorganização, ajustaram-se e cresceram. Mas os que viviam com mais dificuldades não se aguentaram. Peço-lhes que não percam a força e as ideias e que continuem a lutar para ultrapassar esta fase difícil enquanto não se descobre a vacina.