Economia

Inteligência artificial já está a roubar empregos. Mas também está a criar novos

25 dez 2024 10:00

Empresas na indústria, atendimento ao cliente e serviço financeiro estão a perder postos de trabalho por causa da inteligência artificial. Em contrapartida, há um mercado emergente nas tecnologias verdes e saúde digital. Fórum Económico Mundial avisa, no entanto, que a automação está a ser mais lenta do que se esperava

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Marta Leite Ferreira

Há sectores económicos em que a inteligência artificial (IA) já está a destruir mais postos de trabalho do que a criar. O relato é de Pedro Martins, director de Engineering & Property da Michael Page, uma das maiores e mais reconhecidas consultoras de recrutamento do mundo. Os ramos mais afectados são os da tecnologia de informação, indústrias, transportes e logística, produção de conteúdos, serviços de atendimento ao cliente, saúde e serviços financeiros. Mas outros sectores estão a ser beneficiados pelas tecnologias mais emergentes como a IA, confirmou o mesmo especialista: é o caso das áreas das tecnologias verdes, saúde digital e serviços especializados, como o desenvolvimento de software ou biotecnologia. “A automação certamente substituirá muitas funções, especialmente aquelas em sectores tradicionais e repetitivos”, considerou em declarações ao JORNAL DE LEIRIA, mas “também criará novas oportunidades em áreas emergentes”. “O equilíbrio entre destruição e criação de empregos dependerá das políticas de educação, requalificação e apoio social, além da adaptação das empresas às novas procuras do mercado de trabalho”, anteviu Pedro Martins.

O relato do especialista vai ao encontro de algumas das conclusões que surgem no mais recente relatório do Fórum Económico Mundial sobre o Futuro do Emprego, publicado em 2023 e referente às perspectivas de mais de 800 empresas de 27 ramos industriais e 45 economias que juntas empregam mais de 11,3 milhões de pessoas. A organização sem fins lucrativos, que reúne anualmente em Davos, estima que os 69 milhões de novos postos de trabalho que devem eclodir entre o ano passado e 2027 não bastam para suplantar o desaparecimento de outros 83 milhões.

O mercado de trabalho deve assim perder um total de 14 milhões postos de trabalho nos próximos três anos, o que corresponde a 2% dos cargos laborais contabilizados em 2023. O mesmo relatório já indicava que o impacto da maioria das tecnologias no emprego espera-se, no entanto, positivo nos próximos anos, com a análise de grandes volumes de dados, as alterações climáticas, as tecnologias de gestão ambiental, a encriptação e a cibersegurança a transformarem-se nos “principais motores do crescimento do emprego”, adianta o relatório.

A inteligência artificial é mesmo apontada como um dos factores mais disruptivos no mercado de trabalho até 2027, a par de matérias como as tecnologias agrícolas, as plataformas e aplicações digitais; e o comércio electrónico e digital. “Percentagens substanciais de empresas prevêem a deslocação de postos de trabalho nas suas organizações, compensada pelo crescimento do emprego noutros locais”, descreve o documento. Só duas tecnologias ficam para trás na capacidade de criar postos de trabalho: robôs humanoides, que imitam a fisionomia e movimentos humanos; e robôs não-humanoides, como máquinas industriais, drones ou robôs de limpeza.

Pedro Martins valida as principais conclusões deste relatório: “Estão em grande parte em linha com as tendências observadas na prática”, confirmou. Mas os desafios são “complexos” e incluem uma “necessidade de requalificação da força de trabalho”, o “impacto social das mudanças no trabalho” e as “desigualdades no acesso às novas oportunidades geradas pela digitalização”. “O ritmo da transformação varia de acordo com o sector, a região e as políticas públicas implementadas, mas as tendências apontadas são, sem dúvida, uma forte orientação para o futuro do trabalho global”, defendeu.

Imperfeições humanas na IA

Uma das desigualdades que se pode verificar no acesso a cargos de trabalho num mercado voltado para transição digital está relacionada precisamente com uma das aplicações da inteligência artificial: a triagem e análise dos currículos dos candidatos.

“É importante que as organizações implementem essas tecnologias com um cuidado significativo para evitar viés, discriminação e desumanização do processo de recrutamento”, alerta Pedro Martins.

Em causa está o facto de as ferramentas baseadas em inteligência artificial utilizadas nos processos de recrutamento funcionarem não só com base nas ordens que recebe no imediato, como no próprio histórico da empresa em que são aplicadas. Elas aprendem a discernir o que têm em comum os candidatos que tendiam a ser escolhidos pelos recrutadores humanos e quais as características partilhadas pelos funcionários que mais sucesso atingem dentro das organizações.

O problema é que essa tomada de decisão pode ter sido enviesada no passado, mesmo que inadvertidamente, em factores tão diversos como o sexo, a idade ou o percurso académico do candidato — e esse comportamento pode ser repetido pelas ferramentas digitais desenvolvidas entretanto para apoiar no processo de escolha.

“A IA está a transformar em parte o processo de recrutamento e contratação nas diversas indústrias”, indicou o director da Michael Page em entrevista: “O desafio será equilibrar a automação com a necessidade de decisões humanas sensíveis, especialmente em áreas onde a intuiçã o e a empatia são tão ou mais importantes que as competências técnicas”, como os cargos de liderança ou as funções criativas.

Essa transformação — que reduz o tempo e custos associados a uma contratação, mas arrisca deixar para trás avaliações mais subjectivas como a criatividade ou a capacidade de gerar empatia com terceiros — já chegou às maiores empresas da região Centro.

Numa série de entrevistas que um grupo de investigadores da Escola Superior de Tecnologia e Gestão (ESTG) liderado por Pedro Espírito Santo desenvolveu junto de empresas de referência nesta zona do país, no âmbito do Estudo Temático sobre a Digitalização das Empresas, que está a apurar qual a intensidade digital do tecido empresarial da região Centro, algumas empresas de referência e de maior dimensão confirmaram que os departamentos de recursos humanos já fazem uma primeira triagem dos Curriculum Vitae (CV) com apoio da inteligência artificial. Só os candidatos que passam na filtragem curricular é que passam para o passo seguinte, mais humanizado, com uma entrevista presencial e uma análise mais afinada pelos recrutadores.

Questionado sobre quais são as habilidades mais valorizadas num mercado de trabalho tão influenciado por tecnologias como a IA (tanto porque gera e destrói postos de trabalho, como porque entra até no processo de recrutamento), Pedro Martins aponta em dois sentidos.

Em primeiro lugar, são necessárias “habilidades técnicas” e “know how nos sectores e actividades”. E, depois, há que nunca descurar as soft skills, isto é, os atributos pessoais, de ordem comportamental e emocional: “Inteligência emocional e comunicação eficaz; e habilidades cognitivas como pensamento crítico e resolução criativa de problemas tornam-se cada vez mais essenciais”, consideram.

É que estes factores “complementam as capacidades da IA, permitindo aos profissionais tomar decisões de forma suportada e maturada, criando valor e sabendo lidar com situações inesperadas e agregar valor às soluções tecnológicas.”

Transição verde e custo de vida mudam o mercado

E a tendência é que esse equilíbrio entre competências pessoais e literacia tecnológica seja cada vez mais necessário, uma vez que mais de 85% das empresas sondadas no ano passado pelo Fórum Económico Mundial identificam o aumento da adopção de tecnologias novas e de ponta, assim como o alargamento do acesso digital, como a tendência com maior probabilidade de impulsionar uma transformação na sua organização.

Três quartos delas dizem também que pretendem adoptar tecnologias relacionadas com a big data, a computação em nuvem e a IA antes de 2027. As plataformas e aplicações digitais são as tecnologias com maior probabilidade de serem adoptadas pelas organizações inquiridas, com 86% das empresas a esperarem incorporá-las nas suas operações em breve.

Estes números devem, no entanto, ser interpretados com cautela: é que, comparando a situação actual com os dados recolhidos em edições passadas do relatório, demonstra-se que as empresas introduziram a automatização nas suas operações a um ritmo mais lento do que esperavam. Apesar de 34% das tarefas das empresas sondadas já estarem a ser cumpridas por máquinas, isso é só mais um ponto percentual do que em 2020.

Há quatro anos, estimava-se que, por esta altura, a automação já tivesse chegado a metade das tarefas organizacionais.  Agora, julga-se que em 2027 a percentagem não vá além dos 42%. E que, entre as tarefas automatizadas, 35% estarão relacionadas com raciocínio e tomada de decisões e 65% com a informação e processamento de dados.

De qualquer modo, a tecnologia não é o único motor do mercado de trabalho identificado no relatório. Depois da adopção tecnológica, e numa atmosfera económica em que os salários reais foram encurtados, as empresas dizem que o aumento do custo de vida e o crescimento económico cada vez mais lento surgem como as tendências que mais impacto terão nas organizações. É assim porque a desaceleração do crescimento económico é apontado como um dos principais culpados para a destruição de postos de trabalho. Em sentido contrário, a surgir como um dos mais importantes criadores de emprego, está a transição verde, a sustentabilidade e a adaptação às alterações climáticas.

“A transição energética está a alterar alguns panoramas de empregos, não só em sectores tradicionais de energia, mas também em áreas como tecnologia, consultoria e educação”, confirmou Pedro Martins, que conhece a realidade das empresas no terreno. “O futuro do trabalho está cada vez mais interligado com a sustentabilidade, com profissionais com competências em energias renováveis, eficiência energética, melhoria de processos e inovação tecnológica, de forma a moldar um mundo cada vez mais sustentável.”

Questionado sobre quais devem ser as competências essenciais de um trabalhador para enfrentar este mercado de trabalho mais verde, tecnológico e em mudança, Pedro Martins diz que se deve dar primazia a conhecimentos técnicos como a programação e análise de dados; e a competências interpessoais e cognitivas, como inteligência emocional, criatividade e inovaçã o, sustentabilidade e consciência ambiental, adaptabilidade e criatividade. Essa será a receita para a sobrevivência do mais apto num mercado de trabalho cada vez mais dinâmico.