Sociedade
Há seis anos, a Ferraria quis tornar-se mais segura e fazer frente ao fogo
Em 2017, as chamas que mataram dezenas de pessoas em Pedrógão Grande, chegaram furiosas a Ferraria de São João. Apenas os habitantes e um bosque de sobreiros a salvaram. No rescaldo, os moradores arrancaram os eucaliptos e plantaram mais sobreiros. No Dia da Floresta Autóctone voltámos à aldeia
Pouco mais de seis anos passaram desde o incêndio que atingiu Pedrógão Grande e se estendeu aos concelhos à volta, matando 66 pessoas e ferindo 253, sete das quais com gravidade.
No rescaldo da catástrofe, houve uma aldeia que se uniu e decidiu tornar-se mais segura, removendo o verdadeiro matagal de eucalipto não cuidado que a rodeava e criando uma zona segura que a protegesse das chamas.
A 20 de Junho de 2017, terá sido a existência de um grande sobreiral que praticamente rodeava Ferraria de São João, localidade na fronteira entre os concelhos de Figueiró dos Vinhos e de Penela, que a salvou.
Os sobreiros, baptizados, desde então, de “árvores bombeiras”, fizeram abrandar e depois parar as chamas, sem que estas atingissem as casas.
Há anos que a plantação cerrada de eucalipto, espécie reconhecida por ser muito inflamável, à volta da localidade não deixava ninguém tranquilo.
Nos meses após o sinistro, a população uniu-se na Associação de Moradores da Ferraria de São João, para criar um plano que permitisse às gerações seguintes não voltar a viver um cenário como o de 2017.
Foi criada uma zona de segurana, denominada Zona de Protecção da Aldeia (ZPA), arrancaram-se os eucaliptos, plantaram-se árvores autóctones com potencial de abrandamento da velocidade das chamas, criaram-se pontos de água e formou-se uma equipa de intervenção com pessoas da aldeia.
O caminho não foi fácil e esbarrou e continua a esbarrar na lentidão burocrática, na dispersão dos registos de propriedade predial, na ausência de legislação de ordenamento do território, e até em dificuldades levantadas por proprietários ausentes, que dificultam a aplicação do projecto.
Apesar de tudo, o trabalho continuou.
“Estamos num ponto de viragem. No fim destes anos, em que tivemos, praticamente sempre, os mesmos corpos sociais na associação de moradores e na liderança do projecto, estamos num momento de renovação e de passagem de testemunho para uma nova direcção”, conta Pedro Pedrosa, membro fundador da associação.
No início de 2024, Luís Teixeira, um novo morador, passará a ser o presidente. Enquanto isso não acontece, Pedrosa descreve como a aldeia mudou.
É certo que o eucalipto não cuidado voltou a cobrir a serra, sempre cerrado sem deixar ver a luz do sol, transformando esta e outras aldeias da região em ilhas solitárias, mas, talvez pela fama daquilo que ali foi feito, começaram a chegar mais habitantes, um acontecimento que, na Ferraria, território castigado pelo despovoamento, é apontado como um dos resultados positivos do trabalho dos últimos seis anos.
“Há pessoas que compraram aqui casa por terem sido conquistadas pela beleza da aldeia e pela dinâmica diferente que criámos”, conta o representante da associação de moradores.”
Outras pessoas, descobriram a localidade por acaso e ficaram. “Temos um casal natural do Egipto e que vivia no Dubai. Veio para cá e trouxe crianças, o que é óptimo.”
Há ainda quem regresse apenas ao fim-de-semana, vindo de cidades como Leiria ou Coimbra.
“Estamos a terminar um projecto grande, financiado pelo Turismo Portugal, ao abrigo do programa Valorizar, que permitiu fazer um conjunto de iniciativas importantes para a aldeia. A pandemia atrasou-nos e ainda temos algumas coisas que estão a terminar e que prolongam o trabalho feito na ZPA para a linha de água que sai da aldeia e que vai ser valorizada. Será melhorado o leito, o corredor e a galeria ripícolas, numa lógica de regeneração florestal. Pretende-se ir um bocadinho mais além e fazer uma intervenção de benefício ambiental, até porque a água é essencial”, conta Pedro Pedrosa.
Adianta que foram realizadas ainda iniciativas, no âmbito da preservação da identidade da localidade, e, do ponto de vista do turismo, para promover o contacto dos visitantes com os habitantes e com as tradições da aldeia.
“Foi feito um levantamento, que resultou num livro com as pessoas e com as tradições, foi criado um percurso interpretativo no sobreiral. Quando terminar este ciclo, um novo virá.”
Mosaico de propriedades
A questão da propriedade, continua a ser um problema para os esforços de protecção da Ferraria de São João.
Os terrenos que rodeiam o local são um mosaico complexo de proprietários e de pequenas propriedades, todas com menos de um hectare.
“Temos mais de 200 artigos prediais, mais de 80 proprietários e continuamos a ter o problema de não ter um modelo de gestão. A nível do Estado foram criadas muitas medidas ligadas à floresta, desde há seis anos, mas não encontramos nenhuma figura que se adeque e, infelizmente, tivemos pouca ajuda das entidades oficiais, aos vários níveis."
Resumindo, não há um modelo transversal que seja aplicável a aldeias com esta envolvente.
"Estamos a falar de como gerir uma área de três ou quatro hectares e os programas e figuras são para cima de dez hectares ou acima de 100 hectares, portanto, para áreas maiores, e não resolve o problema de 95%, do território nacional, que é composto por propriedades de pequena dimensão, que, se calhar também são as menos importantes à luz dos financiamentos, percentagens dos investimentos e dos PRR.”
Pedro Pedrosa aponta ao busílis: como se resolve o problema real das populações das aldeias portuguesas, e de uma envolvente de 100 metros, num mosaico “super dividido”, e de áreas muito pequenas e muito repartidas?
“O Governo tem de criar um modelo que seja possível, fácil e expedito de aplicar, num processo liderado por alguém com legitimidade, eventualmente o município.”
Por exemplo, em alguns espaços da ZPA da Ferraria de São João, é possível ver áreas que não foram intervencionadas, contrastando com o restante território ordenado, limpo e protegido.
“As pessoas não fazem nem deixam fazer. Experimentámos vários cenários, desde o rebanho comunitário à limpeza mecânica, mas estávamos sempre dependentes da vontade dos proprietários. Há sempre aquela pessoa que não gosta de A ou não gosta de B, ou está bem disposta ou está mal disposta, ou está no Luxemburgo e não está cá e não se importa com o que está a acontecer.”
A zona de floresta autóctone criada na ZPA, permite aos proprietários retirar algum rendimento, pelo menos mais do que aquele que os terrenos em pousio dão.
Foram plantadas várias espécies, em sistema de anéis. O anel exterior, de maior protecção conta com carvalhos e sobreiros, e os anéis mais junto da aldeia, têm árvores de fruto, nomeadamente, nogueiras, castanheiros, medronheiros e cerejeiras.
Em simultâneo, incentivou-se o turismo de natureza e a prática de desportos como o BTT.
“Desde o fim da pandemia que há uma enorme procura por este tipo de actividades e há cada vez mais pessoas a visitar-nos. Além de andar a pé ou de bicicleta, querem o contacto com a cultura e com os habitantes e perceber como está a correr o nosso processo regenerativo.”
Neste momento, Ferraria de São João é o lar para mais de quatro dezenas de pessoas, correspondente a 18 famílias, parte delas com crianças pequenas.