Sociedade

Comandante dos Bombeiros Voluntários da Marinha Grande questiona ICNF

23 out 2017 00:00

Carta aberta enviada ao ministro da Agricultura

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O comandante dos Bombeiros Voluntários da Marinha Grande, Vítor Graça, enviou uma carta ao ministro da Agricultura a questionar o papel do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). 

Leia a carta publicada na página do facebook dos Bombeiros Voluntários da Marinha Grande. 

"Exmº Sr Ministro da Agricultura,

Permita-me Vª Exª, que me dirija a vós através desta carta aberta, com o mesmo sentimento que os pais empenham na protecção dos seus filhos, assim o sinto eu na protecção dos meus Bombeiros. 

A eles lhes devo essa mesma protecção, cuidado e carinho.

Infelizmente observo, que continuamos a ser desrespeitados enquanto operacionais, com impacto nas nossas vidas pessoais e familiares, por entidades com rostos e nomes, que existem, não cuidam nem cumprem o que está legislativamente escrito. 

E é nesse sentido que esta carta surge, pedindo por favor, para que quem tem essas responsabilidades que as assuma e execute, e acima de tudo não “gozem” com os meus Bombeiros. 

Poderia para mim, o mais grave ser mais o mais importante, mas não o é.  

Porque se a tragédia nas Matas Nacionais era há muito tempo anunciada, logo aí se via que que os deveres de quem os tinha não eram cumpridos, e agora continuam a não cumprir com outros dos seus deveres plasmados em lei, e são esses a razão desta carta. 

É triste para mim enquanto operacional responsável, sentir que têm de ser os mesmos homens e mulheres que, de forma gratuita, combateram as chamas defendendo o que estava muito pouco limpo, a continuar gratuitamente a fazer o trabalho do ICNF. 

Isto, quando existem pessoas a ser pagas através desse mesmo organismo, que continuam a não querer saber delas, descartando a responsabilidade legalmente atribuída, nos Bombeiros exaustos que têm que continuar gratuitamente a fazer o trabalho que deveria ser feito por quem de direito.

A Vigilância Pós rescaldo está determinada quer sob a forma de Lei quer nas Directivas Operacionais Nacionais que saem todos os anos, que deverá ser realizada por Sapadores Florestais (ICNF-Matas Nacionais, nesta nossa área). 

É triste que descarreguem mais esse fardo e responsabilidade, em quem anda exausto, não lhe compete assumi-la, não é dono, tem que assegurar todos os outros serviços operacionais que um Corpo de Bombeiros normalmente faz, e tem que recuperar energias pois os alertas não prometem descanso.

E esquecia-me, é Voluntário sem qualquer remuneração. É triste também, eu assistir durante a evacuação de um barracão das Matas Nacionais em Pedreanes, por causa do incêndio, que saíram lá de dentro mais viaturas de combate do ICNF do que as que eu tinha no terreno em combate.

E essas saíram mas não foi para combater, foi apenas para não arderem.

É triste bombeiros meus virem-se queixar, que andavam a combater e a fazer o trabalho que teria outro “dono”, e viram pessoas que deveriam andar no terreno a preparar material para medição de pinheiros e abate, percebi o porquê nos dias seguintes. 

É triste, esse mesmo abate existir ainda em fase de rescaldo e vigilância, e certamente consumir meios humanos, relegando funções para os Bombeiros que não são da sua responsabilidade.

Estaria certamente agendado esse corte anteriormente, e até podem ter sido mínimos os meios alocados, mas deveria ter havido o bom senso como diz o velho ditado. A população a ver sair camiões de madeira cortada ainda com a mata com reactivações, sente-se revoltada, e percebe que daqui apenas se canaliza riqueza para outros lados. Mas este é um assunto de menor relevância para mim nesta carta.

É triste, numa reunião de entidades responsáveis ainda em fase de incêndio, os “donos” serem alertados para o risco de queda de pinheiros queimados e fragilizados na sua sustentação, e a resposta dos donos responsáveis, ter sido no meio da frase algo como: “identifiquem e abatam”.

Honestamente, estão a gozar com quem? Para que servem os meios humanos do ICNF?

É triste, eu pressionar quer o Exmº. Presidente da Câmara da Marinha Grande, quer o Exmº. Comandante Operacional Distrital de Leiria, e eles fazerem os contactos que tinham que fazer, e sentirem-se também impotentes, pela despreocupação em resolver situações de quem tinha essa obrigação.

É triste ligarmos para os Serviços Florestais às 17:03 de sexta-feira, a solicitar-lhes o que a Lei determina que eles façam, e para o qual eles se deveriam ter organizado, e a resposta da senhora que atende é a de que: “o horário de saída é às 17:00, e além do mais deram-nos a tarde de sexta para compensar as horas no incêndio”.

Senti-me impotente e revoltado. Tive de pedir a um Bombeiro assalariado, que por coincidência tinha terminado o seu horário de trabalho às 17:00 e estava para ir para casa, que fosse validar um reacendimento. 

Expliquem-me como é que lhe compenso os 45 minutos extras que trabalhou (dinheiro não entra na equação). Mais ainda, como é que compenso todos os Bombeiros por tudo extra que fizeram em tantos dias?

Como é que compenso os Bombeiros por andarem a fazer gratuitamente, o trabalho que deveria ser feito por quem é pago?

É triste, o “dono” de algo, descartar a responsabilidade e não planear e coordenar conjuntamente a vigilância necessária, apesar de diversas vezes solicitado, mostrando um total desinteresse no “seu” património, e um desrespeito para com outrem. Pois sabem que no fim da linha, na pior das hipóteses, quando arder novamente, os Bombeiros resolvem.

Apenas porque quem devia não antecipou e assumiu as suas responsabilidades. Sinto-me triste, porque agora mesmo, caiu um alerta via CDOS-Ponto de Vigia, para uma possível reactivação.

E lá vamos nós fazer o trabalho de outros, na propriedade desses mesmos “outros”, com Bombeiros que estiveram de serviço a noite toda (logo pouco ou nada dormidos), enquanto “outros”, “os responsáveis”, os “donos”, estarão possivelmente com as famílias, a descartar responsabilidades, no fundo a “gozar” com os Bombeiros.

É triste, responsáveis tentarem descartar as responsabilidades, trocando emails com o Comandante Distrital, cujo conteúdo é o de tentar responsabilizar os Bombeiros da Marinha Grande, e consequentemente o seu Comando, usando o seguinte texto: “solicito os seus bons ofícios para regularizar a situação constatada, sem maiores perdas para o património florestal público que ainda existe na Mata Nacional de Leiria”.

Isto apenas poderia acontecer, porque quem devia vigiar/validar, não o estava a fazer.

É triste, porque é Sabado de manhã, e vou estar triste e preocupado durante o fim-de-semana todo, até abrirem os serviços dos “donos” das Matas Nacionais às nove horas, para fazerem… sei lá o quê.

Enquanto os meus Homens fizeram gratuitamente o trabalho de “alguém”.

É triste tudo isto acima descrito, mas não é novidade, pois que me lembre sempre foi assim. 

Em Julho de 2007, enviei um relatório ao Comandante Distrital à data, onde já à data me queixava de situações iguais.

Dia 19 de Janeiro de 2013 a Marinha Grande sofreu o maior temporal que há memória. Cerca de 10.000 árvores de grande porte foram derrubadas. 

Em cerca de 24 horas desimpedimos vias e socorremos pessoas e habitações. Nas horas seguintes, fomos melhorar o trabalho executado, pois as arvores, essencialmente nas vias principais, tinham sido cortadas e afastadas com guinchos das viaturas ou máquinas, não estando a segurança devida assegurada.

Durante esse trabalho posterior, em que andavam bombeiros de motosserra na mão a cortar em tamanhos que pudessem ser rolados manualmente, somos interpelados agressivamente que andávamos a estragar madeira, ao cortar em tamanhos que os madeireiros que iam comprar não queriam.

Foi a gota de água, abandonámos os trabalhos, conscientes do perigo que deixávamos no terreno, nas bordas das estradas, e preocupámo-nos a partir daí com habitações em risco.

Infelizmente, neste dia de temporal, um Bombeiro ia perdendo a vida. 

Após cerca de 48 horas sem dormir e com trabalho pesadíssimo realizado, ainda me pediu educadamente se podia abandonar o terreno pois tinha de ir trabalhar, e gostava de ir a tempo de almoçar e tomar banho. 

Claro que podia ir. E foi. Deixando parte dele e o seu pensamento nos companheiros que iam continuar a trabalhar. 

A caminho do seu trabalho, pois ainda tinha de conduzir cerca de 30 Kms, adormeceu e colidiu de frente com um camião. Foi dos piores dias da minha vida, quando tive de ligar ao seu pai a avisar do sucedido, para preparar a mãe e a esposa para o pior. 

Felizmente, após muitos dias em coma entre a vida e a morte, foi recuperando lentamente. 

E após muitos meses voltou a trabalhar e consequentemente veio logo vestir a farda. A mesma farda que vestiu neste incêndio, e no qual voltou a ir trabalhar com sono e esgotado, a solucionar o que podia ter sido evitado ou minimizado, e que continua a desgastá-lo a ele e outros, com operações que têm outro “dono”.

Exmº. Sr. Ministro da Agricultura, não posso deixar que continuem a “gozar” com esse meu Bombeiro, e consequentemente com os outros.  Não quero nem devo entrar na questão sobre se as Matas Nacionais estavam limpas, tenho as minhas certezas, mas são minhas e não públicas. 

Não quero nada de mais, apenas que quem deve cumprir, que cumpra a sua parte, se não cumpre não faz sentido existir. 

Ou mais grave, se não cumpre porque não quer, ou não se preocupou, que seja responsabilizado, já que estamos na era da responsabilização e não da culpabilização. Todas estas situações maçam, moem, desmotivam.

E para um Comandante Voluntário, que recebe “zero” assim como a maior parte dos meus Bombeiros, era fácil não se preocupar ou abandonar o cargo e passar para o lado dos que ficam a assistir. 

Mas não sou assim, tenho um compromisso com os meus homens e mulheres, com a Direcção da Associação, e com os Marinhenses. Desistirei por força maior ou quando chegar a hora, nunca para aliviar a “carga” que o cargo associa.

Com a certeza que muito mais haveria para escrever, mas tornaria a carta ainda mais maçuda, solicito os seus bons ofícios, apenas para que faça cumprir o que está legalmente determinado, e que cada interveniente faça e assuma o que lhe compete futuramente.

Certo que diremos sempre “PRESENTES”, me despeço de Vª. Exª. com as mais cordiais saudações.

Vitor Manuel Nery da Graça, comandante dos Bombeiros Voluntários da Marinha Grande"