Viver
As memórias da feira de Maio, que já foi em Março, recuam até ao tempo dos reis
Tradição: A carta de D. Dinis, as chuvas, a concorrência de Aveiro, as romarias, os saltimbancos, os namoros, os bailaricos e a era moderna, junto ao estádio municipal
A feira, que começou em Agosto, aconteceu em Março e agora é de Maio contribui há centenas de anos para a identidade de Leiria. O relâmpago de luz, som e torrão de Alicante que se abate sobre a cidade por estes dias acumula mais história do que as farturas do Penim e mais emoção que um choque de carrinhos sem rodas.
Se hoje sobrevive à concorrência da internet e continua a atrair público de todas as idades, não custa imaginar a importância do algodão doce quando o televisor ainda não tinha sido inventado e as emissões de rádio em FM eram um luxo a que só os portugueses residentes na América tinham acesso. Mas para perceber a relação ao longo dos tempos entre os leirienses e a sua feira anual, cujas raízes recuam mais de sete séculos até ao reinado de D. Dinis, nada como regressar atrás e ler o testemunho directo de Raul Faustino de Sousa, na década de 1930: "À noite concentrava-se toda a gente de Leiria e arredores, passeando, comprando e divertindo-se.
A mocidade arranjava os seus namoros, reatavam-se relações e era ponto obrigatório e típico de todos os dias", descreve, no livro As minhas memórias. Raul Faustino de Sousa, que durante anos foi responsável por receber as candidaturas dos feirantes e supervisionar a distribuição e instalação dos equipamentos no recinto, escreve que o certame "constituiu sempre um acontecimento citadino, com foros festivos e entusiasmo das gentes, que afluíam todos os dias e noites".
Se hoje muitos não se importariam de varrer os leilões de arcas frigoríficas e ursos de pelúcia para debaixo de um tapete, ou pelo menos cortar-lhe alguns decibéis, a verdade é que o antigo funcionário da Câmara não está sozinho neste exercício de evocar memórias embrulhadas em sentimentos.
"Dias de alegria em que se viam os saltimbancos ou os comediantes, em que se comia e bebia nas tendas, em que se cantavam e bailavam as castiças modinhas que já os pais e os avós haviam cantado e bailado", refere o investigador João Cabral na publicação Anais do Município de Leiria, de 1977.
As origens
O conceito de espaço para divertimentos como o conhecemos agora – e que está em reposição desde o fim-de-semana passado até ao final do mês – começa a emergir no século XVI, mas é anterior, e remonta ao reinado de D. Dinis, a primeira documentação histórica enquanto mercado de rua.
De acordo com a historiadora Virgínia Rau, os registos mais antigos são do final do século XIII. Provavelmente, início da década de 1280. No entanto, a carta de feira anual só é dada pelo monarca em 1295 e institui a feira junto à Igreja de São Martinho (hoje desaparecida), na zona da actual Praça Rodrigues Lobo. Diz assim: "Dom Denis pela graça de Deus Rey de Portugal e do Algarue a quantos esta carta vyrem faço saber que eu mando fazer feyra na vila de leyrea e que a começem a fazer sete dias ante Sancta Maria de Agosto e dure per quinze dias compridos".
Num artigo publicado no JORNAL DE LEIRIA, o investigador Ricardo Charters d'Azevedo nota que a localidade foi das primeiras na região a ver a sua feira regulamentada. Santarém, por exemplo, só em 1302, Coimbra em 1377, Batalha em 1413, Tomar em 1420, Penela em 1433 e Pombal em 1442.
De Agosto para Março Ao longo do século XVI, muda para sempre o conteúdo e a forma do evento. João Cabral conta que, por influência do desenvolvimento da devoção a Nossa Senhora da Encarnação, começa a estabelecer-se uma nova feira, com comidas e bebidas, que a cada ano atraía maiores multidões de crentes vindos de longe.
Os feirantes também aderem, atraídos pelo número crescente de dores nesta romaria. Até que a primitiva feira de Agosto acaba por desaparecer e unificar-se com a nova feira, realizada em Março.
A este respeito, Ricardo Charters d'Azevedo lembra que as feiras – não só as anuais, mas outras, com periodicidade semanal ou mensal – eram "um dos aspectos mais importantes da organização económica" do país, durante a Idade Média e séculos seguintes.
Isto numa época em que a circulação de pessoas e das mercadorias era dificultada pela falta de comunicações, pouca segurança das jornadas e excesso de portagens. "Havia paz, a paz da feira que nela proibia toda a disputa ou vingança, bem como actos de hostilidade", refere num texto publicado recentemente.
"A feira não provocava somente um impulso no comércio e nas indústrias, mas também aproximava os homens separados nos seus lugarejos e casais", ou seja, "ia moldando o sentimento nacional", a solidariedade e os interesses comuns.
Cronologia
1285
Na década de 1280, provavelmente em 1284 ou 85, surgem os primeiros registos históricos da realização da Feira de Leiria. O investigador Ricardo Charters d'Azevedo cita o livro I da Chancelaria de D. Dinis para confirmar esta informação. A historiadora Virgínia Rau defendeu a mesma ideia na obra Feiras Medievais Portuguesas
1295
Carta de feira anual assinada por D. Dinis, pela primeira vez, em 1295. Entre outros aspectos, define as condições de protecção dos mercadores. Leiria é contemplada pelo monarca muito antes de outros povoados importantes na região, como por exemplo Santarém (em 1302), Coimbra (1377) e Tomar (1420). O rei manda fazer feira junto à Igreja de São Martinho (hoje desaparecida), na zona da actual Praça Rodrigues Lobo, em Agosto, durante 15 dias, com início sete dias antes de Santa Maria
1500
No século XVI, começa a estabelecer-se uma nova feira em Leiria, com comidas e bebidas, por influência do desenvolvimento da devoção a Nossa Senhora da Encarnação, que atraía cada ano maiores multidões de crentes vindos de longe, conta João Cabral, nos Anais do Município de Leiria. Até que a primitiva feira de Agosto desaparece pela unificação com a nova feira, realizada em Março
1961
A feira deixa o Rossio e desloca-se para junto do Estádio Municipal (ocupando o terreno correspondente ao Rossio dos Borges e ao Sítio das Indiáticas)
Inauguração da Feira de Leiria na primeira metade do século passado
A câmara municipal delibera que o certame passa a designar-seFeira de Leiriae a realizar-se em Maio, por causa das chuvas, mas, também, para evitar a concorrência da Feira de Aveiro, que tem início em 25 de Março
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