Viver
Ainda os sineiros em finais do século XIX
EstóriasdanossaHistória Ricardo Charters d’Azevedo
Apresentamos na semana passada os sinos de Leiria, contamos agora algumas histórias de sineiros dos finais do século XIX. Os repiques do Espírito Santo eram acionados pelas mãos nervosas e ossudas do João Carn’assada. Esta alcunha proviera de ser encarregado de, durante a noite, guardar carne e pão que eram distribuídos no dia seguinte pelos pobres.
E daí começar a propalar-se pela cidade que ele furtava a carne para com ela se banquetear durante vários dias, fazendo-a assar, pois que assim mais facilmente a conservava. Vivendo quase miseravelmente, o seu único consolo, e sua única alegria, era estar agarrado ao badalo dos sinos, julgando-se o primeiro sineiro de Portugal e fantasiando no seu espírito tacanho que executava primorosos trechos musicais e que num só sino tocava com exatidão irrepreensível a melodia popular conhecida pelo S. João.
Sucedeu-lhe no posto um homúnculo ainda mais miserável do que ele— o José Cuvano, um desgraçado exposto da Santa Casa da Misericórdia, que fora criado por uma velhota residente numa lojeca de uma das travessas para os lados do Terreiro. Era novo e já parecia um velho: o rosto enrugado, os olhos ramelosos, o andar desconcertado, o fato em andrajos.
A sua promoção a sineiro do Espírito Santo não lhe devia ter modicado muito as condições de vida. Mas o verdadeiro sineiro era o da torre da Sé, de seu nome António, cujo apelido ou apelidos não reza da história, pois que todos o designavam pelo António Sineiro.
Era um homem vivo e habilidoso sabendo executar nos oito sinos, sem sustenidos nem bemóis, várias peças de música; além disso, o velho relógio da torre, que mais tarde foi substituído a expensas da Câmara Municipal, destrambelhava-se a cada passo, e ele com uma paciência beneditina lá conseguia fazer girar as engrenagens daquele amontoado de ferros velhos. Suponho que depois do António Sineiro nunca mais o sino grande foi dobrado até ao alto.
Depois da morte do António Sineiro, houve dois concorrentes ao lugar: o António Penadinho, alfaiate, e o Carlos Leandro que era cego. O primeiro era um apaixonado por tudo o que dizia respeito a sinos; quem, seguindo pela Rua da Misericórdias subisse a íngreme viela, que vai dar à Rua de Afonso Henriques, veria às janelas da casa do Penadinho, que ficava logo ao princípio da viela num recanto, várias gaiolas, encimadas por minúsculos carrilhões, símbolo evidente da paixão que o dominava.
Atendendo, porém, ao estado de cegueira e pobreza do Leandro, foi este escolhido para sineiro da Sé. Até que um facto algo escandaloso determinou a demissão do Leandro e a sua substituição pelo Penadinho. Aquele foi subornado, por alguém de mau gosto e piores intenções, para quando após a celebração de um casamento de pompa, e o cortejo nupcial saía da Sé, tocasse uma modilha popular — o «Passarinho trigueiro»! Os noivos e respetivo séquito não ficaram trigueiros, ficaram escarlates de indignação.
Pôde então o Penadinho realizar o sonho dileto de toda a sua vida: ascender à torre e ser um rival do “Quasímodo” de Nôtre-Dame! Em 1909 exercia o cargo de sineiro, a contento geral, o Penadinho, que executava no carrilhão da torre da Sé verdadeiras maravilhas. Como o relógio da torre passou a ser propriedade da Câmara, esta contratou o relojoeiro J. A. Silva, mais conhecido pelo Zú, com a obrigatoriedade de dar-lhe corda e vigiar pelo seu bom funcionamento.
Por motivos que se ignoram, o Zú, para arreliar o Penadinho, só a altas horas da noite se resolvia a ir à torre, obrigando este a levantar-se sob a ameaça de a cidade protestar por o relógio ter parado. Não sabemos se chegaram alguma vez a vias de facto, mas o bom do cónego Maia entra um dia na Câmara, quando os vereadores se encontravam em sessão, e apresenta o ultimato: “Ou o Zú deixava de ser encarregado do relógio da torre ou a Câmara retirava da mesma o relógio”.
*Texto escrito de acordo com a nova ortografia