Sociedade
A vida depois dos 100 anos
Só no Lar Emanuel, em Leiria, moram seis pessoas com mais de 100 anos, a maioria lúcidas, sem qualquer demência
Maria de Jesus caminha sem ajuda, desempoeirada, de mala a tiracolo sobre uma blusa azul de cambraia, calças de sarja e um lenço colorido. Gesticula muito enquanto fala, quando se afasta do grupo que ainda agora ali estava reunido para a fotografia: João, António, Romana, Emília, Luís, todos com mais de cem anos, quase todos lúcidos, companheiros de casa, no Lar Emanuel, em Leiria.
É aqui que se concentram seis centenários, num caso raro para a região e para o país. “Juntos fazem 622 anos”, como gosta de contabilizar David Martins, antigo diretor do Lar que actualmente é “uma espécie de consultor”, responsável pela organização de eventos. Vai lá todos os dias, joga snooker com João Grilo, 102 anos feitos em Janeiro. E ao fim de poucos minutos de conversa com Maria de Jesus, percebemos o que quer dizer David com a expressão “banalizou-se” [chegar aos 100 anos].
Para conhecer a história da mais recente inquilina deste grupo (só chegou ao Lar há três meses) é preciso recuar até 4 de Novembro de 1913, quando nasceu, numa aldeia da Caranguejeira. Viveu lá a vida toda, desde a infância e juventude passada no cultivo da terra e mais tarde sentada à máquina de costura. Era esse o ofício de que mais gostava, mas ser mãe de dez filhos obrigou-a a tomar mais conta da lida da casa do que das bainhas na roupa das outras.
Quando aponta as limitações que a idade lhe trouxe, sai-lhe um lamento: “hoje nem sou capaz de enfiar uma agulha”. Completou neste outono 104 anos, feitos de uma independência que impressionou o pessoal do Lar, quando ali chegou, pouco antes da data. Afinal, Maria de Jesus ainda vivia sozinha, em sua casa, cozinhava e tudo.
“Os meus filhos iam lá dar-me um jeito na limpeza e na roupa. Mas chegou uma altura em que eu já não estavam em condições de morar sozinha”, conta ao Jornal de Leiria a mulher que agora divide o mesmo espaço com um dos filhos: Joaquim Gameiro, o mais velho, residente no Lar há 15 anos.
Era taxista, mas um acidente vascular cerebral debilitou-o cedo. “Ele entretém-se muito no computador e nessas brincadeiras que elas fazem aqui no Lar”, conta Maria de Jesus, para quem a surdez é agora “uma chatice”. Nada que a impeça, porém, de dançar, como ainda gosta. Há outros prazeres que não dispensa, como saborear uma boa refeição e beber o seu café. “Nunca tive muitos cuidados com a comida, sempre comi de tudo, lá na terra plantava-se o que se comia, das batatas às couves. Mas aqui há 30 anos ninguém me julgava vida”, revela Maria de Jesus, que desde então vive apenas com metade do estômago.
É para controlar “esse problema” que toma um comprimido todos os dias, mais aquele para controlar a tensão arterial. Ao contrário da maioria dos idosos, não tem diabetes nem outras maleitas. Tem, isso sim, o carinho de 18 netos e 12 bisnetos, mais a atenção dos oito filhos ainda vivos.
O poder dos fármacos
Talvez seja o amor (à vida, sobretudo), talvez a sorte de ir seguindo em frente, ou apenas a ordem natural das coisas, do mundo que pula e avança no que respeita aos fármacos, que prolongam a vida. Certezas, só duas: chegar aos 100 anos e mudar de século “banalizou-se”, considera David Martins, boa parte da vida dedicada a acompanhar a terceira idade.
Foi a partir de meados dos anos 90 que começou a disparar o fenómeno. Lembra-se bem de como era antes. “Quando algum deles chegava aos 100 fazia-se uma festa com direito a banda filarmónica e tudo. Era um acontecimento! Actualmente, continuamos a fazer festas mas é quase tão comum como fazer 90. Aliás, além destes seis com 100 anos ou mais, no Lar temos vários pré-centenários, que este ano ou no próximo vão fazer um século de vida”.
David Martins não tem dúvidas de que a longevidade fica a dever-se “ao poder dos fármacos”. “A medicação que tomam vai-lhes prolongando a vida. Mas há aqui uma coisa muito importante: a forma como as pessoas hoje são seguidas, acompanhadas por médicos e enfermeiros, pelas auxiliares dos lares, quando estes são fontes de vida e não depósitos. Antigamente as pessoas morriam em casa, sem assistência e sem fármacos. O que mudou foi isso. E não tenho dúvidas de que vão durar cada vez mais”.
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