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A Fausta dá voz às crianças refugiadas, com a ajuda da National Geographic
Narrativa | Recorrendo ao storytelling e à animação, a escritora Fausta Cardoso Pereira vai ajudar as crianças dos campos de refugiados da Grécia a relatar a diáspora que os fez abandonar o lar
Em Setembro do ano passado, passaram cinco anos desde que o pequeno Aylan Kurdi, de pouco mais de três anos, morreu afogado numa praia às portas da Europa. Fugia com o pai da guerra no Iraque.
Sem nunca o saber, a pequena criança, depois de morta, tornou-se, por alguns meses, no símbolo dos refugiados que arriscam todos os dias a vida para fugir aos conflitos armados nas suas terras-natal, em busca de uma vida melhor e mais segura.
Depois, à medida que o tempo passou, Aylan e o que ele representa foi esquecido pela maior parte das pessoas, inclusivamente daqueles que, há cinco anos, quiseram ajudar outras crianças refugiadas como ele e se empenharam a recolher e a enviar bens para os campos de refugiados na Turquia e na Grécia, a fim de as apoiar.
Para que a história de Aylan e de outros Aylans mais afortunados não seja esquecida, a escritora Fausta Cardoso Pereira propôs à National Geographic Society (NGS) ir trabalhar em três campos de refugiados na Grécia, onde irá dar voz às crianças e ajudá-las a contar as suas histórias de provação e sobrevivência, com recurso ao storytelling (narrativa) e às curtas-metragens de animação.
Há muito tempo que Fausta Cardoso Pereira tinha na cabeça um projecto onde a narrativa fosse central. Gostaria de o aplicar nos campos de refugiados na Grécia, junto das crianças, porque os relatos mais conhecidos são os dos adultos.
Calhou ler um livro sobre a primeira mulher exploradora da National Geographic Society para todas as peças da ideia encaixarem. Preparou um projecto, submeteu-o e a NGS, após várias entrevistas e sugestões, aceitou-o.
Contado assim, parece fácil, mas, na verdade, a escritora já tinha provas dadas neste campo. Durante seis anos, geriu a iniciativa Os Filmes do Recreio, em escolas do primeiro ciclo, no Alto Alentejo.
Algumas dessas curtas, sobre temas sociais, ambientais e prevenção de comportamentos de risco, foram, inclusivamente, premiadas no Cinanima. “Num primeiro momento, para o projecto na Grécia fui buscar aí alguma inspiração”, conta a escritora que, em 2017, venceu a segunda edição do Prémio Antón Risco de Literatura Fantástica (Galiza-Portugal)
A famosa sociedade de exploradores e documentaristas norte-americana aceitou o repto e concordou em apoiar o projecto.
Recém-chegada de Moçambique, onde geria um projecto para o desenvolvimento, e educação, financiado pela União Europeia, está a preparar a equipa e a terminar a obrigatória formação, para poder partir em Março.
Nos campos de Katsikas, Thermopylae e Ritsona, Fausta e a sua equipa – além dela, um realizador de cinema e o psicólogo Carlos Pastor – irão desenvolver oficinas de narrativa e de cinema de animação em conjunto com os jovens refugiados, entre os 10 e os 18 anos, para que estes possam “descobrir as histórias que querem contar” e, simultaneamente, receber ferramentas e conhecimentos para serem os autores dos seus próprios filmes.
Será um trabalho constante e exaustivo com a duração de três semanas.
“Acredito que a NGS se interessou muito pelo facto de darmos liberdade às crianças e jovens para descobrirem as suas necessidades narrativas. No final das semanas de trabalho, queremos ter dois filmes por campo, num total de seis curtas-metragens, de, no máximo seis minutos”, explica.
A inclusão de um psicólogo na equipa resulta da necessidade de ter alguém, habilitado e com conhecimentos, que possa ajudar com os relatos e experiências que, compreensivelmente, serão traumáticos.
Após a conclusão da iniciativa na Grécia, a National Geographic avaliará os conteúdos produzidos, promovendo a divulgação e visualização destes relatos em festivais, salas de cinema e meios audiovisuais.
Para o projecto, Fausta conta com o apoio de três Organizações Não-Governamentais (ONG), criadas por professores, jornalistas, médicos e intelectuais, também eles refugiados ou antigos refugiados.
É o caso da Habibi.Works, uma ONG alemã com a qual irá trabalhar no campo de refugiados em Katsikas, da Happy Caravan, fundada por um refugiado, no campo em Thermopylae, e a Wave of Hope for the Future, ONG fundada por um professor refugiado e com a qual desenvolverá trabalho em Ritsona.
Após as três semanas em cada campo, num total de nove semanas de trabalho intensivo, a escritora espera deixar plantadas as sementes para que os jovens mais velhos continuem o trabalho; para que [LER_MAISsejam eles os facilitadores que ajudam os mais novos, oriundos de países como o Afeganistão, Bangladesh, Iraque ou Síria, também a contar as suas histórias.
Porque, embora não se fale muito do problema dos deslocados pela guerra e pelos conflitos religiosos e étnicos desde que o coronavírus SARS-CoV-2 aprisionou o mundo, todos os dias famílias inteiras chegam às praias da “fortaleza Europa”, sem que haja uma solução a não ser fechá-los nos verdadeiros depósitos de seres humanos que são os campos de refugiados.
“O tempo de espera para resolver o problema continua a ser de anos e os campos estão sobrelotados, como recentemente ouvimos, quando o de Moria ardeu ou houve inundações em Lesbos.
E isto é um problema da Europa e de Portugal que está à frente da presidência da União Europeia”, sublinha Fausta Cardoso Pereira.